Por:
Vicente Serejo
Tenho
três histórias para contar com Dom Eugênio Sales. Uma delas vivida durante um
encontro pessoal, nos jardins da residência do governador Geraldo Melo, quando
fui o ilustre portador de uma pequena missão que acabaria sendo um mistério
jornalístico. A segunda, por assistir com os próprios olhos na sala vip do
aeroporto Augusto Severo. E uma terceira por ouvir de testemunha ocular.
Nos
três casos, sempre guardei sem contar. Até porque o Cardeal não admitia
conceder intimidade a ninguém.
O
episódio mais antigo e bem humorado foi uma coincidência. Fui ao aeroporto, às
pressas, num início de tarde, entrevistar o senador Dinarte Mariz que embarcava
para Brasília. Ele estava na sala vip conversando com o Cardeal que voltava ao
Rio depois de alguns dias em Natal. E ouvi quando Dinarte disse para ele: ‘Dom
Eugênio, Deus gosta aqui na terra mais de mim do que de você’. O cardeal sorriu
e o velho Dinarte então acrescentou: ‘Não deixou que você fosse político. Teria
dado muito trabalho’.
O
segundo episódio é aquele que contei a Diógenes da Cunha Lima e ele citou como
piada, com tintas de literariedade. É verdadeiro. Foi assim. Um professor da
Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, chegou ao Brasil trazendo uma
carta ao Cardeal Eugênio Sales. Ex-padre, doutor de formação erudita na área de
ciências sociais, desejava viver no Brasil como professor da Pontifícia
Universidade Católica do Rio. Nada como a palavra de Dom Eugênio para fazê-lo
admitido com seu bom currículo.
Procurado
pelo professor de Louvain, onde também fizera a sua pós-graduação, Otomar tinha
a tarefa de levá-lo à presença de Dom Eugênio. O encontro, marcado com
antecedência, foi no Palácio São Joaquim. O Cardeal recebeu na hora marcada. No
meio da conversa, depois de ouvir as razões do professor e pedir notícias de
amigos de Louvain, foi servido um café e um conhaque de procedência nobilíssima
que todos aceitaram em doses discretas, tudo dentro da liturgia que um cardeal
sabe impor.
O
conhaque ainda estava aquecendo a alma dos convidados quando foi posta sobre a
mesa uma caixa de charutos personalizados com a marca no anel: Cardeal Sales.
Explico: como Cardeal Primaz, em Salvador, negociou dívidas da fábrica
Suerdieck salvando da falência – anos depois foi inevitável – e seus operários
do desemprego em massa. Daí o gesto de todos os meses, por gratidão, ser
enviada uma caixa de charutos especiais com seu nome. Assim a conversa acabou
demorada no Palácio São Joaquim.
De
repente, o secretário veio informar que acabava de chegar ao Palácio o
arcebispo D. Nivaldo Monte. D. Eugênio mandou que ele fosse levado ao gabinete,
pediu que todos apagassem os charutos e disse sereno, mas num discreto bom
humor: ‘Nivaldo não está acostumado a estas coisas’. Conduziu os convidados até
os cumprimentos a D. Nivaldo e os deixou à porta do austero Palácio São
Joaquim, ali na Rua Glória, perto do Hotel Glória, de onde administrou a
Arquidiocese do Rio ao longo de trinta anos.
A
história mais interessante e mais rica do ponto de vista da política
eclesiástica aconteceu quando de sua chegada a Natal para o Congresso
Eucarístico, encerrado com a presença do Papa João Paulo II. Otomar Lopes
Cardoso, meu cunhado, veio na comitiva em vôo direto do Rio. O Cardeal ficou
hospedado na casa do governador Geraldo Melo e foi lá, depois do jantar, que
fui encontrá-lo para uma missão muito simples e discreta: levar um envelope
para Luiz Maria Alves, diretor do Diário de Natal.
Ora,
nada mais natural. O Poti já publicava aos domingos A Voz do Pastor, o mesmo
texto de O Globo, no Rio. Alves, naquele estilo implacável, escolheu Dom
Eugênio Sales como pastor do jornal e não D. Nivaldo Monte, o arcebispo. Foram
estas suas únicas palavras sobre o envelope com o brasão do Palácio São Joaquim
que passou às minhas mãos: ‘Peço a Luiz Maria Alves que publique isto domingo,
na abertura do Congresso Eucarístico’. Nada mais. Ficamos mais um pouco e
depois nos despedimos.
Dia
seguinte, final da manhã, entreguei o envelope a Alves e disse o pedido. Ele
puxou de dentro uma folha com o brasão colorido do Vaticano, e leu: era o Papa
João Paulo II nomeando o Cardeal para presidir o Congresso Eucarístico até sua
chegada a Natal. Semanas depois, o Congresso Eucarístico havia passado,
perguntei a Otomar o que foi aquilo. Ele respondeu que o documento do Papa
chegara a Natal semanas antes do início do congresso, mas estranhamente não
fora divulgado pela Arquidiocese.
Nunca
pude ter certeza se foi esquecimento da Arquidiocese ou alguma trama nos
meandros da política clerical. Sei que pelo menos um padre em conversa
reservada chegou a admitir que a publicação teria sido resposta a Dom Antônio
Costa. Nunca ninguém saberá. O que se sabe é que D. Costa não realizou o sonho
de ser elevado a Arcebispo de Natal. E merecia. Foi transferido para ser bispo
titular de Caruaru, em Pernambuco. Só lembro que naquele domingo O Poti
circulou cedo da tarde com o brasão do Vaticano, em cores, na primeira página.
Sem legendas. Discretamente. Bem no do estilo do Cardeal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário