domingo, 26 de agosto de 2012

Serejo: Do mar antigo

Por: Vicente Serejo

Outro dia, Senhor Redator, numa entrevista, indagado sobre os territórios líricos deste ofício que é um fazer de todos os dias, veio uma pergunta sobre o mar como espaço da memória. Lembrei Joaquim Nabuco, o menino do engenho Massangana, quando diz que o traço da vida inteira é o desenho da criança esquecido pelo homem. E ele escreve numa plenitude de beleza que a tudo excede: ‘Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga’.

Ora, ninguém se iluda: quem tem um mar antigo dentro da própria alma é como quem é dono de um lugar no mundo. Ninguém ainda escreveu a teoria humana do lugar. Antigamente, era fácil ouvir alguém chamar sua cidade, sua vila ou povoado de ‘meu lugar’. Veja: tem aquele sentido claro e forte que a sociologia chama de pertencimento. Não precisa ser dono, propriedade privada de papel passado. Não pertence a alguém, no entanto, é de todos. Igualmente. São latifúndios repartidos. Pra que mais?

Não quero usar a frase de Nabuco para passar escritura daquilo que não me pertence, mas digo sem medo: o mar mais bonito é o mar da infância. No meu caso, o meu. Tenho posse e domínio. Há anos invento e reinvento sua beleza. Seu mistério encantado, suas sereias.  Do sono triste quando chega o inverno até a primeira manhã de sol inaugurando o verão e os maturís, ainda roxos, talvez os últimos, reluzindo aquele tempo imenso de vida que os dias levaram, lentamente, para o país do nunca mais.

Quem, como Nabuco, não tem na memória, quando não na própria alma, os aromas agrestes da infância? Quem nasce perto do mar carrega para sempre o perfume do vento morno e salgado, o salitre, o cheiro do azinhavre, o azedume dos peixes secando ao sol, e a lavanda das umburanas feridas pelas enxós. Tudo é mar. Como se a infância fosse uma ilha perdida para sempre. Erguendo suas pequenas catedrais de espumas que logo se desfazem como se a ilusão, para existir, nascesse a cada instante.

Mais ainda, Senhor Redator, se a alma é parnasiana diante de um mar de sonoros alexandrinos a acordar as vozes da infância. Ninguém tem culpa de não ter sido. Ou, sendo, de ser tão pouco. E pouco de não ter jeito de servir aos olhos dos modernos. Sim, é o mesmo mar primevo e talássico a assombrar os dias e as noites num estranho espetáculo de recordações. O mesmo mar, no mesmíssimo e estranho encanto da infância. Nada mudou. Nada. Nem mesmo a solidão da triste canção do seu desassossego.

Naveguei velhos mares, Senhor Redator. Confesso sem pejo. No mar-oceano português e no azul sem fim das ilhas gregas. No Mediterrâneo calei um sonho. Vi mulheres nuas em Nice e homens ricos gastando alegria em Ostend. Venci o Canal da Mancha como se descobrisse o outro lado do mundo e vaguei nas ilhas do Adriático diante dos leões da sereníssima república de Veneza.  Tive medo do Mar Negro, olhei de longe o Bósforo, e de tudo vos digo: nenhum se derramou nos olhos como o meu mar antigo.

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