quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Vida para Consumo",de Zygmunt Bauman

 
Por Letícia Veloso
“Vida para Consumo” é o mais recente trabalho de Zygmunt Bauman traduzido para o português. Neste livro, o autor aprofunda a mesma linha de argumentação já conhecida na academia brasileira: passamos da sociedade de produtores, equivalente mais ou menos ao que outros autores entendem por modernidade, para uma sociedade onde o consumo impera sobre a produção e as relações sociais, antes “sólidas”, se tornam cada vez mais “líquidas”. “Líquido”, aliás, é o termo-chave, por meio do qual se compreende algumas características fundamentais desta sociedade: em vez da solidez e segurança (supostamente) propiciadas pelo período moderno, em nossa era, literalmente e parafraseando Marx, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Ou seja, as instituições e relações se tornam mais fluidas, e a busca pela estabilidade dá lugar ao desejo do efêmero, do transitório, do amorfo. Reforça-se, assim, uma das principais marcas deste autor: sua consistência teórica e argumentativa, que foi sendo gradualmente construída através de um corpus que se enxerga como comentário e crítica dos principais dilemas da sociedade contemporânea.

Dentre estes dilemas, Bauman vem desde meados da década de noventa destacando – e criticando – o consumo. Nesta visão, o que dá sentido à sociedade contemporânea, mais do que qualquer outra coisa, é a ânsia eterna por consumir sempre mais e mais rápido, descartando ainda mais rapidamente o “velho” em troca da mais nova novidade. Tal é o caso de “Vida para o Consumo”, que leva este olhar negativo sobre o consumo às vias de fato, sugerindo que, com o surgimento da “modernidade líquida”, criamos uma sociedade onde os indivíduos se tornam, ao mesmo tempo, os produtores e promotores das mercadorias e a própria mercadoria.

Construído em cima de exemplos retirados de fontes tão díspares quanto sites de relacionamento na Internet e seções de política externa, comportamento e moda de jornais, a lógica é a seguinte: existe uma correspondência, uma “afinidade eletiva”, por assim dizer, entre a cultura do consumo e a tarefa que a modernidade “líquida” impõe a seus sujeitos, que é a de produzir para si próprios as continuidades, a solidez e a estabilidade que a sociedade não mais consegue lhes oferecer. E tal busca se dá, cada vez mais, através do consumo. Porém, este é, precisamente, o motivo pelo qual ela está necessariamente fadada ao fracasso: é próprio da cultura consumista manter-se eternamente no jogo da busca pela satisfação de desejos insaciáveis.

Isto se complica ainda mais, diz Bauman, porque a transição, nos hábitos e práticas de consumo, entre a funcionalidade do que denominávamos “necessidades” e os imperativos muito mais voláteis e etéreos do desejo, foi radical. O consumo “líquido” não serve mais para ao atendimento de necessidades e sim de desejos. E é por via destes desejos que os indivíduos contemporâneos estariam sendo “forçados” a tentar produzir algum sentimento de ordem e estabilidade a partir da total falta de solidez ao seu redor. Neste contexto, todo e qualquer indivíduo se torna ao mesmo tempo mercadoria e “marqueteiro”, produto e vendedor. Ambos habitam o mesmo espaço, aquele do mercado.

Isto se dá não por escolha própria, mas porque toda e qualquer pessoa sabe que precisa promover a si mesma como um produto desejável e atraente ao consumo de outrem, pois só assim receberá a atenção que almeja, seja de possíveis empregadores, seja de potenciais interesses amorosos, seja de qualquer outra relação social. Quer dizer, se não se comodificarem, as pessoas não conseguirão, nesta sociedade, construir relações sociais significativas e consistentes. Assim, é só pela auto-mercantilização que o indivíduo moderno conseguirá alcançar os graus de aprovação social e inclusão que desesperadamente busca, não mais como pessoa, mas como consumidor-mercadoria.

O livro é dividido em quatro capítulos: “Consumismo versus Consumo”, “Sociedade de Consumidores”, “Cultura Consumista” e “Baixas Colaterais do Consumismo”. Já pelos títulos se percebe a tomada de posição: embora o título em português prefira falar de “consumo”, é na verdade de “consumismo” que o pensador vem tratar. Este, visto como a forma de consumo predominante em nossa sociedade, é entendido como “um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros [que funcionam como a] principal força propulsora e operativa da sociedade”. Ou seja, temos consumismo quando o consumo assume o papel-chave antes assegurado aos produtores (p.41, ênfase no original).

Este enfoque é crucial, porque em “Vida para o Consumo” o que interessa é compreender os mecanismos ocultos que nos “interpelam” – conceito tomado emprestado de Althusser – em nossos momentos mais íntimos, tornando-nos aquilo que somos enquanto sociedade de consumidores. Em outras palavras, o que importa é compreender a transformação sutil e perversa que estaria no cerne da própria sociedade contemporânea, qual seja, a transformação de consumidores em mercadorias.

Neste livro, esta é a verdade mais profunda (e mais oculta, porque fetichizada) de nossa sociedade. Eis um dos pontos mais fortes da narrativa: o paralelo entre o fetichismo da mercadoria tal como estudado por Marx na época da sociedade de produtores e aquilo que hoje seria um “fetichismo da subjetividade”. Tanto quanto aquele outro fetichismo, este também se baseia “numa mentira” pois, “na sociedade de consumidores, a dualidade sujeito-objeto tende a ser incluída sob a dualidade consumidor-mercadoria”, fazendo com que a soberania do sujeito seja “reclassificada e representada como a soberania do consumidor” (p.30). Em outras palavras, as relações entre sujeitos são fetichizadas, transfiguradas em relações entre mercadorias, e este processo atinge seu ápice quando a própria subjetividade vira mercadoria, ou quando a vida vira consumo.

Fazendo jus à busca por desvendar as principais mazelas desta sociedade, devemos destacar a criatividade analítica e a capacidade de encontrar nexos entre processos aparentemente isolados. Ao examinar o impacto do consumismo sobre coisas tão díspares como a Internet, a política e a democracia, a construção das identidades e a estratificação social (que, na sociedade de consumidores, se traduz na tendência de produzir “subclasses” de não-consumidores e não-cidadãos), é pintato um retrato ao mesmo tempo acertado e apavorante do mundo em que vivemos. Um mundo onde tudo e todos são mercadoria, onde os que estão à margem são “não-pessoas”, porque afastados daquilo que, na atualidade, nos faz sermos percebidos como verdadeiramente humanos: o consumo e a capacidade de consumir. Mais apavorante ainda é a insistência no fato de que até as relações humanas estão sendo cada vez mais colonizadas pelo mercado e pela comodificação da realidade.

Para além deste olhar uniformizante, porém, cabe também no texto uma certa busca por possíveis focos de resistência e não-adequação. Mas estas possibilidades, infelizmente, são vistas como ínfimas face ao poder totalitário da cultura consumista. Por exemplo, o crescente ativismo político em torno do consumo, tal como praticado por movimentos de consumidores ou movimentos ambientalistas, é até visto como uma potencialidade interessante. Mas, em última análise, o que acaba sendo ressaltado é que tais movimentos não são mais que reflexos do crescente desencanto com a política e da despolitização do social. O que, em outras palavras, quer dizer que são resultado de processos que a própria sociedade de consumidores ajudou a criar. Assim, ao mesmo tempo em que é reconhecido no consumo algo além da mera “cultura do consumismo”, no final das contas, esta nova forma de ação política nunca conseguiria chegar nem perto de se mostrar “tão efetivosa ao estabelecer os alicerces da solidariedade social quanto as ‘formas tradicionais’ costumavam ser” (p.185). Por mais ambíguas que sejam as manifestações do consumo na sociedade contemporânea, como exemplificado pelo “ativismo de consumo”, seu real poder transformador é limitado pelo fato de estarem inseridos nesta sociedade que a tudo e todos coloniza.

E, como não poderia deixar de ser, esta colonização é vista como afetando até os recantos mais íntimos da vida, incluindo nossas vidas pessoais e relacionamentos amorosos. Para construir este argumento, Bauman busca inspiração, como dissemos acima, em sites de relacionamento amoroso, nos quais indivíduos desiludidos com a busca amorosa tentam encontrar parceiros no ciberespaço, tratando-os e sendo tratados como mercadorias, enaltecendo suas próprias qualidades e agindo como verdadeiros profissionais do marketing do self. Ora, o que poderia ser mais indicativo da mercantilização da vida do que tais processos onde o “eu” e o “outro” só entram em contato através de uma série de mediações mercadológicas?

Expandindo este argumento, os sites sociais como MySpace e Facebook (equivalentes ao onipresente Orkut) também são atacados: a busca por amigos online segue o mesmo padrão da busca por parceiros amorosos; ambas são mercatilizadas e refletem a comodificação da vida. Isto porque, ao elaborar um perfil num destes sites, não é o próprio sujeito que é revelado, mas um sujeito-fetiche, uma mercadoria que se relaciona com outras mercadorias e obscurece todas as verdadeiras relações pessoais que tornaram aquele contato cibernético possível e pensável. No entanto, cabe indagar o quanto Bauman realmente investigou acerca destes sites: afinal, os estudos sobre Internet e vida digital mais recentes sugerem exatamente o contrário, ou seja, que tais contatos online são utilizados muito mais para se reforçar laços de solidariedade já existentes e criar outros laços fortes do que como meios de contato superficiais e comodificados.[1]

O que nos leva a uma questão importante: em todo o livro, não nos é dito praticamente nada sobre as práticas de consumo concretas de consumidores-sujeitos, nem sobre os modos geralmente ambíguos pelos quais se relacionam com o consumo. A discussão gira em torno de textos jornalísticos onde consumidores e mercadorias interagem transformando-se um no outro, ou de sites na Internet onde se pode deduzir tais comportamentos, mas não sabemos detalhes sobre o que exatamente aquelas pessoas buscavam enquanto se engajavam em tais práticas, nem quais os sentidos que elas próprias atribuíam ao consumo. Também não descobrimos como aquelas atividades, complexas e contraditórias porque exemplos de práxis humana, foram percebidas pelos envolvidos. O que também explica por que os principais antropólogos contemporâneos do consumo não são citados, limitando-se as referências antropológicas ao trabalho de Mary Douglas.[2] Pois o que falta no texto é exatamente aquilo que a antropologia permitiria enxergar através da observação concreta de sujeitos concretos: os limites e contradições inerentes ao “consumismo”, uniliearmente entendido por Bauman como negativo e manipulador. Ora, um dos principais ensinamentos da antropologia é que mesmo os processos de dominação mais contundentes nunca conseguem subjugar seus sujeitos por completo, pois a criatividade humana sempre os reinterpretará e ressignificará de modos inesperados.

Por outro lado, a força do argumento deste prolífico pensador é exatamente sua suposta universalidade: os processos discutidos, em “Vida para Consumo” tanto quanto no restante de sua obra, são vistos como universais, pois a comodificação também o é. Curiosamente, do ponto de vista antropológico esta é também sua fraqueza: a falta de especificidade e de relativismo, a naturalização de processos eurocêntricos e a suposição de que estes se dão da mesma maneira ao redor do globo. Para tal grau de universalidade, precisaríamos de mais evidências sobre práticas concretas em diferentes sociedades.

O mais importante, porém, é lembrar que este livro e seus predecessores servem a um propósito maior: como todos os grandes cientistas sociais, sua maior contribuição está no fato de que Bauman é “bom para pensar”: ele nos leva a olhar para dentro de nós mesmos da maneira mais crua e perturbadora possível. Depois de seguir o argumento, partindo da discussão sobre a nova sociedade de consumidores e os modos como ela transforma a todos em mercadoria, passando pelos pormenores da cultura consumista e como ela direciona todos os modos de ser e estar no mundo, chegando às “baixas colaterais” do consumismo e os riscos a ele inerentes, emergimos ainda mais curiosos em pesquisar realidades cada vez mais complexas. Por exemplo, como diferentes grupos e classes sociais, diferentes gêneros e faixas etárias percebem esta mercantilização da vida, se é que a percebem assim? Como procuram reagir ou subvertê-la em seus cotidianos? E como estaria ela sendo utilizada, na prática, para reconstruir ou derrubar formas anteriores de distinção? Após a leitura de “Vida para Consumo”, quem sabe alguns de nós se sentirão motivados a perseguir tais linhas de investigação, procurando aprofundar, questionar, ou mesmo contradizer algumas ou todas as provocações lançadas aqui?

De qualquer forma, este eminente ensaísta da vida contemporânea vem há anos chamando nossa atenção para fenômenos fundamentais, como a despolitização da esfera pública, a substituição do cidadão pelo consumidor, ou a crescente individualização da identidade. E nada mais lógico que agora seu olhar se dirija às implicações destes processos para a comodificação da própria vida humana. “Consuming life”, no título original (e sem subtítulos) tanto pode significar “vida para consumo”, como quis a tradução em português, quanto “consumindo a vida”. Certamente, Bauman ilustrou e questionou ambos conceitos magnificamente, produzindo uma obra de fôlego que, apesar de possíveis questionamentos, parece destinada a se tornar mais um clássico imediato da teoria crítica. É neste sentido que, talvez mais do que qualquer outro autor da atualidade, Bauman é, sim, excelente para pensar… E para apontar, mesmo que não o faça explicitamente, para a infinidade de caminhos de pesquisa que se abrem aos antropólogos.

[1]  Postill, J. “Localizing the Internet beyond Communities and Networks”. New Media & Society, 10(3):413-431, 2008.
[2] Douglas, Mary. In the Active Voice. Routledge and Keegan Paul, 1998.
(*) Letícia Veloso  é Doutora em Antropologia pela Universidade de Chicago, E.U.A.. Professora de Sociologia, Antropologia e Estudos Culturais da Escola Superior de Propaganda e Marketing, Rio de Janeiro. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos em Propaganda e Marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo.


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