domingo, 13 de novembro de 2011

Somos todos filhos de Gogol

Por Carlos Fialho,

Certa vez fui presenteado com uma antologia de contos chamada “Os 100 melhores contos de humor da literatura universal”. Tratava-se de uma reunião de textos de humor universais. Havia de Millôr Fernandes a Oscar Wilde, passando pela maravilhosa e debochada crônica irlandesa “Manual para fazer churrasco de crianças pobres” de Jonathan Swift. Adorei o regalo. Como bom publicitário que sou, dono de um conhecimento tão abrangente quanto superficial, especialista em porra nenhuma e mestre em me virar nos cinco primeiros minutos de qualquer conversa, poderia ler um texto de cada mestre da literatura bem-humorada mundial e sair por aí dizendo que sei das coisas, que conheço a obra de Fulano de Tal, ou do notável autor Sicrano dos Anzóis, mesmo tendo lido apenas um breve escrito de cada um.

Afinal, basicamente, é isso que os publicitários fazem nas horas vagas. Nós saímos por aí nos vendendo, tentando passar para as pessoas uma imagem vencedora que, nem sempre (ou quase nunca) corresponde à realidade. Em nosso imaginário particular, que tentamos a muito custo, tornar coletivo, somos todos uns Robertos Justus. Se você vir algum dos meus colegas de profissão tentando se passar por entendido de qualquer assunto que não seja propaganda, você estará diante de uma grande farsa. Podemos até saber um pouco de literatura, futebol, cinema, iogurtes achocolatados, automóveis ou neurocirurgia ortodôntica molecular, mas a verdade é que nunca saberemos nada com a real profundidade dos estudiosos e verdadeiros inteligentes.

Digressiono, digressiono. Voltemos agora ao objeto deste texto. Dentre os autores reunidos na antologia de contos, havia um russo (na verdade, ucraniano) chamado Nikolai Gogol. Em minha ignorância publicitária, não o conhecia, óbvio. Porém, o elemento surpresa até que foi bom, pois pude conhecer maravilhado a cada página um escritor muitíssimo à frente do seu tempo que me impressionou pela leveza, a alegria e a naturalidade com que flertava com o absurdo em meio a Czares intolerantes, privação quase que absoluta de bens e alimentos e uma estrutura burocrática pesada privilegiando a imobilidade.

Um dos contos de Gogol contido na coletânea era “O Capote”, a história de um pobre funcionário de repartição, pertencente á mais baixa casta do serviço público russo, que tinha a função de copiar documentos, reescrever com uma bela caligrafia textos redigidos por outros. Seu nome era Kakáki Kakakievitch, vivia na mais autêntica miséria, não dispunha de muita cultura e, por conseguinte, se expressava mal graças a um sofrível vocabulário. Sempre que lhe era oferecida uma oportunidade de melhorar seu status no trabalho, mediante a realização de um trabalho diferente do seu, por mais simples que fosse, recusava-se tremendo de pânico genuíno: “Dê-me algo para copiar. Dê-me algo para copiar.” E dessa forma, escapava de ter que escrever algo de sua própria lavra.

Um dia, o funcionário Kakákievitch decide mandar fazer um capote de fina estampa. Reuniu todas as suas economias e encomendou a melhor peça que suas parcas economias puderam bancar. A partir de então, trajando a recém adquirida indumentária, o funcionário passou a se mostrar mais disposto, dono de um espírito mais alegre, participando inclusive de algumas conversas, coisa que nunca havia feito na vida. Com isso, passou a receber convites que não julgava ser merecedor. O protagonista, apesar de um notório ignorante e desprovido de qualquer carisma ou habilidade social, vê sua vida literalmente mudar devido à nova aparência, algo como alguns ricos natalenses que, mesmo demonstrando incontestáveis demonstrações de burrice e mediocridade, são alvos das mais altas honrarias sociais devido a suas roupas de grife e caros automóveis. Na volta de um dos compromissos sociais para o qual havia sido convidado, Kakáki foi assaltado. Levaram-lhe o capote. Sua vida acaba. Foi definhando, tornando-se silencioso até calar-se definitivamente ao falecer de desgosto. O final fantástico que se segue é tão surpreendente quanto cômico.

Outro conto de Gogol constante na coletânea é “O Nariz”. Este, seguramente, me encantou sobremaneira. A história do assessor de colegiado Kovaliov que uma dada manhã desperta e percebe a falta do… nariz traz tanta galhofa e faz uma sátira tão bem feita aos desmandos e arbitrariedades da burocracia russa, bem como da urgência por patentes e méritos sociais artificiais, que muito me lembrou o demolidor e implacável grupo inglês Monty Python. Ainda mais devido aos recursos narrativos adotados pelo escritor que contou a história do sumiço do nariz sob duas perspectivas: a de quem perdeu e também de quem o encontrou.

É hilariante a forma como o assessor de colegiado Kovaliov, patente civil russa que equivalia ao título militar de major (aliás, o protagonista fazia questão de ser chamado de major) se preocupa muito mais com os prejuízos que a ausência do órgão pode trazer a sua carreira e vida social do que com sua saúde ou flagrante deformação. A maneira cínica com que o homem de meia idade fala de si e do seu estilo de vida parece ter sido escrito por um típico potiguar residente nos melhores condomínios do Plano Palumbo, preocupando-se sempre com o que mais lhe interessa: tudo aquilo que for mais supérfluo. Muito bom.

Meses depois de ler tais contos, encontrei um livrinho chamado “O retrato”. Arrematei no ato e foi graças a este conto que Gogol se tornou definitivamente um dos meus escritores favoritos. A trajetória do pintor que passa de artista promissor a um retratista requisitado na sociedade de São Petesburgo traz o velho dilema do artista que se vende e, por algum dinheiro, joga fora toda uma carreira de excelência dedicada às artes. Tudo isso temperado por uma maldição emanada por um misterioso retrato que o pintor havia comprado e que dá ao conto uma preciosa pitada sobrenatural.

Resolvi escrever sobre o autor ucraniano porque acabei de ler o livro “O Capote e outras histórias”, recém lançado pela Editora 34. A obra conta com 5 contos de Gogol, autor tão importante para a literatura russa do Século 19 que certa vez Dostoievisky afirmou “Somos todos filhos do “Capote”, de Gogol.” Só esta declaração já seria motivo suficiente para lê-lo.

Recomendo a todos aqueles que desejam conhecer um autor clássico com o frescor e a leveza de um bem-humorado texto contemporâneo.

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