sábado, 12 de novembro de 2011

Resenha do livro: "Hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina", de Nancy Leys Stepan

Por Octavio Domont de Serpa Jr. (*)    

O recurso a uma fundamentação fisicalista, biológica, de características morais dos sujeitos, como um expediente para colocá-las ao abrigo das variações culturais e peripécias da História, tem, como não poderia deixar de ser, também uma história. Relaciona-se com transformações culturais, políticas, sociais e econômicas recentes - pouco mais de duzentos anos - sucedidas no mundo ocidental na seqüência da transição do Antigo Regime para a sociedade democrática-liberal-burguesa. Com a queda do Antigo Regime, na virada do século XVIII para o século XIX, o Ocidente testemunha a afirmação da liberdade e da igualdade dos cidadãos. Este sopro de universalismo igualitário é rapidamente sucedido, no decorrer do século XIX, pela proposição de diferenças ancoradas na biologia, servindo para restringir e nuançar a concepção de cidadania. Na medida em que a questão da diferença não estava mais dada de antemão, que as antigas hierarquias encimadas pela nobreza haviam desmoronado, que a sociedade era composta por cidadãos livres, iguais e fraternos, a questão da diferença, que não fora, entretanto, extirpada, precisava de uma nova formulação. Já que o novo pacto social não contemplava adequadamente este velho problema, a resposta vai ser procurada no aquém do social, na própria natureza, na biologia, na matriz corpórea de cada indivíduo. Toda uma série de tipologias e hierarquizações baseadas em atributos morais articulados de forma imediata com características físicas – e vice-versa – é elaborada, podendo em decorrência justificar a expansão capitalista, a estratificação social, a hierarquização das raças, a desigualdade entre os gêneros, a dominação imperialista. A diferença agora se inscreve no corpo, na ordem natural, e não mais na ordem social. Se antes o que se herdava era uma posição nobiliárquica, agora o que se pode herdar é o germe da degradação e da decadência, que inclui entre suas possibilidades a loucura, o crime, a devassidão, a fragilidade do corpo, a miséria, agravadas, no decorrer das gerações, até a extinção da linhagem.

É neste contexto mais amplo, de fundamentação fisicalista das diferenças humanas e de preocupação com a transmissão hereditária do germe degenerativo, que se inscreve o movimento eugênico, a partir da segunda metade do século XIX. A palavra eugenia foi introduzida no vocabulário científico oitocentista em 1883 por Francis Galton - cientista, geógrafo, estatístico e viajante britânico, além de primo de Charles Darwin – embora seus fundamentos já tivessem sido formulados pelo mesmo Galton desde 1869, quando da publicação do seu Hereditary Genius. Derivada do grego eugen, “bem nascido”, a eugenia pode ser entendida como o conjunto de “possíveis aplicações sociais do conhecimento da hereditariedade para obter-se uma desejada melhor reprodução”, embora ela também tenha sido entendida como “movimento de aprimoramento da raça humana, vale dizer, pela preservação da “pureza” de determinados grupos”.
“Em termos práticos, a eugenia encorajou a administração científica e “racional” da composição hereditária da espécie humana. Introduziu também novas idéias sociais e políticas inovadoras potencialmente explosivas – como a seleção social deliberada contra os indivíduos supostamente inadequados”, incluindo-se aí cirurgias esterilizadoras involuntárias e racismo genético”.
Embora à primeira vista, para o leitor mais desavisado, estas definições de eugenia possam parecer extraídas diretamente de algum breviário nazista, este não é o caso. Na verdade, estas proposições conheceram uma ampla difusão no Ocidente e foram postas em prática, com importantes diferenças regionais e culturais em suas bases, conseqüências e alcance, em praticamente todas as nações democráticas da Europa e da América, antes e durante a vigência do regime nazista na Alemanha, tendo vivido o seu apogeu no período entre as duas grandes guerras.
O pesadelo nazista serviu para sepultar definitivamente qualquer credibilidade científica e político-social das propostas eugênicas. Mas a história deste movimento no Ocidente em absoluto, como vimos, ficou restrita à experiência da Alemanha Nazista. Já tendo sido extensivamente estudado no mundo Anglo-Saxão por Daniel Kevles, na França por André Pichot e Anne Carol, além dos inúmeros artigos publicados a respeito por Stephen Jay Gould, o movimento eugênico é estudado em sua vertente latino-americana por Nancy Leys Stepan, professora de História das Ciências e da Medicina da Universidade de Columbia, no seu livro “A Hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina”, de onde foram extraídas as passagens acima citadas.
Adotando uma perspectiva construtivista, que entende a ciência como uma prática social, sujeita ao debate de valores próprios a cada contexto social e histórico e não como um conjunto de procedimentos empíricos, neutro e que ambiciona a uma representação atemporal da natureza, cuja acurácia é dada pela maior adequação de seus enunciados à realidade, a autora nos apresenta uma visão policromática da noção de eugenia.
Tradicionalmente associadas à direita, ao machismo e ao racismo, bem como ao reducionismo hereditário de caráter mendeliano, as propostas eugênicas se revelam muito mais nuançadas do que isto. Constatamos que ela já foi de esquerda e feminista, como na Alemanha dos anos 20 e já pregou uma raça cósmica e a miscigenação construtiva, no período revolucionário do México da segunda década do século passado. Assim como foi suporte das propostas de branqueamento da raça no Brasil do entre guerras, tendo sido claramente racista e xenófoba nos EUA, onde embasou políticas de esterilização e cotas diferenciais de imigração desde os primeiros anos do século XX.
A idéia da ciência como um conjunto de procedimentos de esclarecimento da realidade que avança linear e progressivamente obedecendo exclusivamente às regras internas do esclarecimento empírico também sai bastante enfraquecida da leitura deste livro. Não obstante as contribuições de Weissman, que diferenciou a linhagem celular somática da linhagem germinativa – óvulos e espermatozóides – assim como as leis de Mendel – lei da segregação dos caracteres e lei da disjunção independente dos caracteres – já estarem suficientemente incorporadas à biologia do início do século XX, sustentando o hereditarianismo radical que marcou a eugenia dos países anglo-saxões e do norte europeu, os países europeus latinos, sobretudo a França, seguem endossando a idéia lamarckista de herança dos caracteres adquiridos.
Esta perspectiva, melhor caracterizada como neo-lamarckista, é também a perspectiva adotada pelos países latino-americanos em sua apropriação das propostas eugênicas. E ao contrário do entendimento comum que poderia tomar isto como sintoma de subdesenvolvimento científico, a adoção da perspectiva neo-lamarckista na América Latina decorreu não só da maior influência cultural da França – onde o (neo)lamarckismo vigiu pelo menos até a década de 40 do século 20, representando importante barreira à difusão do darwinismo – na região, mas também de uma série de fatores sócio-políticos que encontravam nesta perspectiva científica uma melhor possibilidade de articulação. Entre estes fatores a autora lista a emergência do nacionalismo e das preocupações com a construção de uma identidade nacional baseada na idéia de raça no período após a primeira guerra; a crise do subdesenvolvimento; a pobreza como questão social; as ideologias raciais da região, que de algum modo se espelhavam na perspectiva européia, tentando reagir a ela, que via os países latino-americanos como exemplo de uma miscigenação degenerada.
O neolamarckismo, com sua ênfase na influência do ambiente sobre a hereditariedade e a reprodução, permitiu que fosse implementada na região uma eugenia que, ainda que articulando as categorias de raça, gênero e identidade nacional à biologia e à natureza, despolitizando-as, baseou-se em práticas muito menos duras, mais próximas da puericultura, da saúde pública e do saneamento, do que aquelas dos países anglo-saxões, fundamentadas no hereditarianismo mendeliano.
Baseado em extensa pesquisa de fontes primárias, que incluem artigos de periódicos, atas de congressos, livros de divulgação, obras literárias, além de farto material crítico, o livro de Nancy Leys Stepan se concentra na análise da eugenia no Brasil, na Argentina e no México, articulando o seu estudo em torno das categorias raça, gênero e identidade, dedicando a cada categoria um capítulo do seu livro. Outros países latino-americanos também são abordados em menor extensão – Cuba, Porto Rico, Uruguai e Peru – sobretudo no capítulo dedicado ao movimento pan-americano de eugenia.
Se hoje as propostas eugênicas, em especial aquelas fundamentadas na doutrina neolamarckista, nos parecem obsoletas, se não risíveis, nem por isso a leitura de A Hora da Eugenia deixa de ser altamente recomendável, na medida em que vivemos em uma época amplamente seduzida por propostas de fundamentação fisicalista, de cunho biologizante, das nossas experiências subjetivas e práticas sociais. Este livro é uma demonstração inequívoca do caráter contingente de nossas teorias, da incontornável dimensão valorativa de nossas práticas científicas e das tensões político-sociais inerentes às controvérsias acadêmicas. A Natureza, como bem lembrou Latour, não é a causa da resolução das controvérsias científicas, mas antes a sua conseqüência.
 
(*) Octavio Domont de Serpa Jr. é professor-Adjunto do IPUB/UFRJ; coordenador do Laboratório de Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ); autor de Mal-Estar na Natureza. Um estudo crítico sobre o reducionismo biológico em psiquiatria, Te Corá, 1998.

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