quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A história oculta dos quilombos do Sul do Brasil

Por Léo Laps
   
Desde que chegaram às terras brasileiras, os africanos escravizados lutaram contra a exploração a que foram submetidos. O ponto alto destas batalhas pela liberdade foi a organização dos quilombos —locais onde os negros que logravam fugir de seus senhores se reuniam para viver, constituindo verdadeiras cidades fortificadas onde se produzia e guerreava contra a escravidão. O maior e mais bem estruturado quilombo foi o de Palmares, no estado de Alagoas, que chegou a abrigar 50 mil pessoas durante as últimas décadas do século XVII.

Habitando o país desde 1585, toda a população negra arrancada de sua terra natal, com o passar dos tempos, se tornou brasileira, integrando nosso povo. Essa condição (de brasileiros) é muito superior a de simples afrodescendentes; ela confere aos negros brasileiros nacionalidade e, pelo fato de estarem no país em todos os ramos da atividade social, lhes dá, principalmente, status e condição de classe. E é a partir dessa situação que vivem e lutam os negros brasileiros, recuperando a memória guerreira de seus antepassados não como um acontecimento racial, mas como parte da historia das lutas do povo brasileiro pela liberdade, prosperidade e progresso. (Da redação)

No Brasil, segundo o censo de 1988, os estados de menor população negra são Paraná (2,6%) e Santa Catarina (2%). O Sul do Brasil não recebeu tão grande massa de escravos durante os séculos coloniais, quanto o Sudeste e Nordeste. Colonizado principalmente por imigrantes europeus, tinha na época apenas importância estratégica, como rota do charque rio-grandense e ponto de apoio para a navegação portuguesa, e era tida com descaso pelo governo central. Ao contrário do sistema de plantation, produzia policulturas em pequenas propriedades.

A história dos negros na região Sul costumava ser abordada como inexpressiva, quase ausente. Porém, nos últimos 17 anos foram encontrados mais de 100 redutos negros espalhados pelos três estados da região, todos eles em terras sem registro em cartório.
Estas áreas não são quilombos, no sentido tradicional do termo, mas podem ser vistas como um local de resistência. Ilka Boaventura Leite, antropóloga que estuda o fenômeno quilombola na região pelo Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas, fundado em 1986 na Universidade Federal de Santa Catarina, afirma que o reconhecimento das terras e dos direitos da população descendente de antigos quilombolas é essencial para o país. Segundo ela, o não reconhecimento dessas terras como pertencentes aos quilombolas representa o desacato às leis federais de usucapião.

Remanescentes

Ilka explica que os quilombos constituem uma "questão relevante desde os primeiros focos de resistência dos africanos ao escravismo colonial, reaparecendo no Brasil República com a Frente Negra Brasileira (nos anos 30 e 40) e retornando à cena política no final dos anos 70, durante a redemocratização do Brasil." Foi na Constituição de 1988 que um grande passo foi dado rumo ao reconhecimento desses povos: o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Ele diz o seguinte: "Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos."

Mas o passo foi um pouco defeituoso. A regulamentação da lei esbarrou em detalhes como a definição do "fenômeno quilombo", em quem era o sujeito de direito e qual seria o processo de titulação, já que os quilombos têm como uma de suas características principais a propriedade coletiva. Há o problema de grupos que haviam sido expulsos com violência de seus redutos (como os cafuzos atualmente assentados em José Boetaux, SC), daqueles que receberam lotes de seus antigos senhores (caso da comunidade do Casca, RS), entre vários outros exemplos. Aurélio Virgilio Veiga Rios, procurador regional da República em 1995, declarou na Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizado em São Luís, Maranhão, no mesmo ano, que quilombos novos ou comunidades rurais compostas por negros libertos, com terras adquiridas, não constituíam remanescentes de quilombos e por isso não poderiam ser agraciados pela lei federal. A aplicabilidade da lei também é motivo de discussão, sendo que alguns a consideram normativa e imperativa, enquanto outros defendem a titulação como essencial para que se assegure as terras quilombolas.

Dimas Salustiano da Silva, advogado e professor de direito constitucional da Universidade Federal do Maranhão, acredita que o artigo 68 deve "se conduzir para uma interação integrativa do artigo 216, no seu quinto parágrafo, que traz comando de tombamento em relação a todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos." Ele aponta parâmetros para a identificação deles: autodefinição étnica, posse secular e coletiva, família como unidade de produção e harmonia com o meio.

Novamente, Ilka aponta que a regularização fundiária "não é, por si só, suficiente como um ato de reconhecimento e ampliação dos direitos dos remanescentes dos quilombolas, embora seja crucial para a continuidade e permanência dos herdeiros nas terras." Para ela, há de se oferecer saúde, educação, saneamento básico, sustentabilidade e elevação das condições de vida para esses povos. Ela crê que a visão dos quilombos deve ser ampliada para além da idéia de unidades guerreiras. "O quilombo significa para essa parcela da sociedade brasileira sobretudo um direito a ser reconhecido e não propriamente um passado a ser rememorado", afirma a antropóloga. 

Mestiçagem

Ilka relaciona o baixíssimo percentual de negros nos estados do Sul do Brasil com uma tendência à supervalorização da colonização européia da região. Na época imediatamente posterior à abolição da escravatura no país, e com a chegada maciça de colonos da Europa, estava bastante em voga a ideologia do "embranquecimento". Acreditava-se que a mestiçagem, junto à imigração, daria fim às raças negra e indígena e o Brasil tornar-se-ia um país de gente branca. Os livros que contam a história de Santa Catarina ligam o sucesso econômico do estado exclusivamente aos imigrantes europeus e seu estilo de colonização, superdimensionando seu empenho, sem se deter nas variáveis que tornaram a exploração do território possível, nem nos fracassos, num esforço quase falacioso de mitificar uma superioridade racial. Enfim, uma teoria falsa e reacionária.

O desenvolvimento da região Sul foi baseado nessa mitologia. Sua identidade foi construída, desde o princípio, a partir da negação da presença do negro. Durante a campanha abolicionista, escravos e libertos sequer são citados. A verdade é que os negros tiveram participação na indústria baleeira, além de ser comum um colono comprar somente um escravo para ajudar nos trabalhos da roça, trabalhando ombro a ombro escravo e senhor. O que pode até supor uma democracia racial, o que não era verdade. A discriminação disseminada pelas classes dominantes contra os negros era evidente. Antigos estudos apontam que, em 1950, na cidade de Florianópolis, bem como nas principais localidades do sul, o negro era minoria e habitava a periferia dos morros e os bairros pobres, constituindo a maior parte dos trabalhadores infimamente remunerados.

A segregação foi um processo ocorrido em todo o estado, o que auxiliou na formação dos inúmeros quilombos locais. Nos primeiros 50 anos do século XX, a população descendente de europeus cresceu 784% mais do que a população de descendência negra. Ilka afirma que "mais do que propriamente extinto, o que ocorre é que a população descendente de africanos vai diminuindo proporcionalmente, o que não significa, em hipótese alguma, uma diminuição em termos absolutos." 

Visibilidade

Foi o desconhecimento da existência desses redutos que causou tamanha falta de informação sobre esses povos negros. Uma suposta insuficiência numérica chegou a paralisar movimentos e discussões sobre a questão dos negros locais. "O território negro aparece, então, como elemento de visibilidade a ser resgatado", informa Ilka. Frechal, no Maranhão, e Rio das Rãs, na Bahia, foram os primeiros redutos a serem reconhecidos. No Rio Grande do Sul, a Comunidade do Casca, localizada entre o oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, também tem sua propriedade garantida, adquirida através do testamento dos donos da fazenda, que tornaram libertos e donos das terras os seus escravos, quase 80 anos antes da abolição oficial da escravatura.

Uma das formas em que se manifestou a segregação contra os quilombolas é econômica: no oeste catarinense, os colonos plantadores de tabaco tinham certo despeito pelo sucesso da cooperativa de erva-mate de uma comunidade cafuza. Antes, criticavam essa comunidade e também os índios que ali tinham sua reserva pelo modo de produção —seriam eles uns malandros por não trabalhar como os colonos —e pelo fato de serem isentos da cobrança de impostos pelo governo. 

Agora, estes povos começam a ser considerados brasileiros, depois de muita luta e sacrifícios, e a ter seus direitos reivindicados e realizados, depois de terem sido alijados do processo de ocupação territorial com a promulgação da Lei de Terras de 1850, lei que estabelecia a compra direta como única fonte de acesso a terra —fato que, por motivos óbvios, excluía os escravos e negros alforriados. Dessa forma, a imensa maioria da população negra, não só na região sul do Brasil, acabou se deslocando para terras devolutas no interior ou para as favelas e periferias das grandes cidades, dada a sua extrema pobreza. Destas novas áreas ocupadas, muitas vezes eram retirados conforme a vontade de grupos econômicos, como a Sociedade Colonizadora Hanseática, que expulsava caboclos, índios e cafuzos das terras da região do Contestado com o apoio do governo federal.

Os atos de repressão ao candomblé, a sua música e outros aspectos da sua cultura também eram constantes —e o são até hoje. É fato que a polícia militar nasceu, ainda na primeira metade do século XIX, com esse intuito: reprimir as manifestações do povo negro oprimido. O quilombo é o mote principal, segundo Ilka, para pôr em debate a questão dos direitos do povo negro brasileiro, praticamente uma dívida da sociedade para com os descendentes de escravos, que constituem hoje a parte mais pobre do país. Citando a Frente Negra Brasileira, "a abolição definitiva da semi-escravidão e da miséria ainda é, com certeza, um processo inacabado." 


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