terça-feira, 15 de novembro de 2011

A Sociedade Colonial: uma reflexão sobre as moralidades e religiosidade popular na América Portuguesa (Séculos XVI-XVIII)

Por Patrícia Domingos Wooley Cardoso

“Quem se debruça sobre a religiosidade colonial não pode ter como parâmetro as normas e os padrões do catolicismo doutrinal, ditado pela teologia e pelo direito canônico. A rigor, se este existe, não foi a colônia portuguesa da América o lugar adequado para se visualizar sua forma acabada. O que aqui se vê é um catolicismo popular marcado pela precariedade da evangelização e pela hipertrofia da constelação devocional.”

Esta afirmação de Caio Boschi, citada por Mariza Soares em Devotos da Cor, resume em si a essência da reflexão que proponho apresentar no presente texto, a respeito da religiosidade luso-brasileira desenvolvida ao longo dos séculos coloniais na América Portuguesa.

Ronaldo Vainfas em ‘Moralidades Brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista’, artigo publicado no primeiro volume da coleção História da Vida Privada no Brasil, lança um olhar histórico às intimidades sexuais dos colonos na América Portuguesa. Ao abordar o tema, Vainfas rediscute a idéia de miscigenação proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, considerando aquela não uma característica da adaptabilidade lusa a outras raças, mas, parte de um projeto português de colonização. Procura, desse modo, traçar um perfil das mentalidades morais e religiosas na colônia.

Mediante as dificuldades em tratar de uma vida privada no mundo colonial; questão, aliás, muito bem discutida por Leila Algranti em artigo da mesma coletânea, Vainfas se utiliza de fontes eclesiásticas e inquisitoriais como instrumento valioso de aproximação às intimidades dos colonos. O próprio fato de tais fontes permitirem ao historiador tratar de forma sistemática do universo das intimidades sexuais na colônia, revela que o território da sexualidade, tal como o cotidiano familiar, era bem menos íntimo do que hoje se pode supor. As denúncias da população contra os que se desviavam dos comportamentos sexuais e morais lícitos, fosse por medo ou conveniência, demonstra que a preocupação com a intimidade não era relevante, num mundo de poucas cidades, em que as casas eram geralmente rústicas e devassadas, expostas aos constantes olhares dos vizinhos.

Ronaldo Vainfas considera que a empresa colonizadora na América Portuguesa estaria ligada muito mais ao processo de expansão mercantil e marítima européia, do que à normatização, e privatização das sociabilidades em curso na Europa a partir do século XVI, fato esse analisado por Peter Burke em Cultura Popular na Idade Moderna. O que não implicou, no entanto, na ausência de projetos moralizantes destinados à sociedade luso-brasileira nos trópicos. Dentre os missionários aqui instalados, os jesuítas, representantes da devoção moderna tridentina, se destacaram em tentar, por todos os meios, transformar a terra brasilis em parte legítima da Cristandade, estimulando uniões sacramentadas e um modo de vida regrado. Contudo, Vainfas afirma que os representantes do clero viram-se frustrados pelos interesses mercantis da colonização, e pelo hibridismo cultural que a América Lusitana possuía por natureza. Por outro lado, essa não é a opinião de Luiz Felipe de Alencastro. Este autor acredita que a lógica evangelizadora dos missionários não excluía o caráter mercantilista do esforço de colonização; pelo contrário, justificava a compatibilidade entre escravidão e catolicismo.

 No seu livro O Trato dos Viventes, Alencastro lembra que Nóbrega, desejoso em conciliar a incumbência da catequese à condição cativa dos africanos, sugeria a D. João III uma legislação clara a respeito do matrimônio entre escravos. Tal união, nas palavras do pioneiro jesuíta, não isentava os cônjuges do cativeiro, e tão pouco obrigava seus senhores a alforriá-los. De qualquer forma, a despeito das impressões acerca da atuação missionária jesuítica, o que pretendo destacar aqui é que através da análise das moralidades coloniais, é possível vislumbrar certos aspectos característicos da religiosidade popular luso-brasileira. Dentre esses aspectos, sem dúvida, a mistura entre sagrado e profano é evidente.

Como bem lembra Ronaldo Vainfas, diferente do ocorre hoje, a sexualidade na época moderna não constituía uma esfera privada, de foro íntimo dos indivíduos; antes, a igreja considerava esse universo matéria de sua alçada. Dentro da lógica da reforma tridentina, todas as relações mantidas fora do casamento, mesmo aquelas estáveis, eram consideradas ilícitas, e qualificadas como pecado. No entanto, no campo das moralidades sexuais populares, o sagrado não se separava do profano. Segundo Vainfas, não raro as pessoas atribuíam características eróticas à Virgem, aos santos e ao próprio Cristo. Nos papéis da visitação quinhentista do Santo Ofício ao Brasil, acusações como essas são bastante freqüentes. Havia também denúncias contra mulheres que, em suas relações íntimas com os maridos, proferiam as palavras de consagração da hóstia, como se estivessem, do mesmo modo, consagrando seus momentos de intimidade.

Além dessas manifestações típicas de uma religiosidade popular, existia ainda um vasto terreno de magias e sortilégios amorosos, por vezes assimilados pela Inquisição como feitiçaria, mas, que na verdade, não deixam de evidenciar uma religiosidade pouco interiorizada.

Os lugares privados para o prazer eram escassos na colônia. A rusticidade dos domicílios, conforme já foi lembrado, não permitia muita intimidade entre as pessoas, o que fazia com que alcovas fossem improvisadas em tabernas e lojas, na densa vegetação do mundo rural, ou nas próprias igrejas e capelas. A igreja, aliás, era o espaço de sociabilidade por excelência no mundo colonial, e não foram poucos, segundo Vainfas, os encontros amorosos ocorridos durante as missas dominicais, procissões e festas religiosas. O mesmo acontecia nas casas de recolhimento e nos poucos conventos estabelecidos na América Portuguesa. Inclusive, este autor argumenta que a representação, nas falas populares, de um Cristo com órgão fálico, ou uma Nossa Senhora personificada em mulher comum, indicam a necessidade, ou vontade, dessas pessoas em aproximar o sagrado do cotidiano, da vida real. Para Ronaldo Vainfas, portanto, tais fatos não indicam perversão ou desejo de subverter a doutrina e os símbolos católicos, antes, representam a mistura entre sagrado e profano, marca indelével da mentalidade popular religiosa no Brasil Colonial.

 Peter Burke, em seu já citado trabalho Cultura Popular na Idade Moderna, apresenta toda a complexidade do termo "cultura popular", que ele define num primeiro momento como sendo aquela não oficial, a da "não-elite", a das classes subalternas. Burke coloca a necessidade de se pensar nos artesãos e camponeses dos inícios da Europa Moderna a partir de um mundo totalmente diferente do atual, despido de conceitos e valores contemporâneos; conselho esse, aliás, não menos pertinente ao tratamento da sociedade colonial. É a partir daí, que ele apresenta sua hipótese, a de que a cultura popular, nos inícios do período moderno, não era estranha à minoria culta da ocidentalidade européia, essa a tinha como uma espécie de segunda tradição. 

Em outras palavras, tanto a maioria da população, quanto sua pequena parcela erudita, compartilhavam de uma cultura popular comum. Até pelo menos a primeira metade do século XVII, as elites participavam das festas de rua e carnaval, juntamente com os grupos menos abastados. Mas ao longo dos tempos modernos, a renascença, as reformas religiosas, a revolução científica e a ilustração fizeram com que a cultura erudita se transformasse, ao passo que entre pequena e grande tradições, uma imensa distância foi estabelecida. Por fim, a cultura popular tradicional passou aos olhos da minoria letrada como algo tão diferente, a ponto de ser exótico, e por isso atraente. No século XIX, essa cultura tradicional se transforma em folclore. Na realidade, as elites intelectuais redescobrem a cultura popular no século XIX, a partir da perspectiva do folclore. Como causa, ou conseqüência de tais transformações, Burke afirma que a reforma Tridentina, assim como as reformas protestantes de um modo geral, empreenderam um esforço de reformulação da religiosidade popular na Europa a partir do século XVI, visando moldar suas extravagâncias carnavalescas e exterioridades.                                  

No que se refere a esses movimentos reformistas dos séculos XVI e XVII, Jean Delumeau em A Civilização do Renascimento, particularmente no capítulo intitulado ‘O Renascimento como Reforma da Igreja’, procura analisar as reformas religiosas não como resultado dos enormes abusos da Igreja de Roma, e sim como conseqüência de uma mudança no cristianismo popular a partir do século XVI.

O autor coloca a existência de um fator principal que caracteriza a vida religiosa nesse momento: a ascensão da devoção popular. Segundo ele, a ambição de poder temporal e o comércio da fé não deixaram de ser motivo de clamores por reformas, clamores esses, aliás, que já vinham desde a Idade média. Entretanto, no século XVI, num ambiente ‘arejado’ pelo humanismo, o controle da Igreja Católica sobre a fé não se fazia mais exclusivo como no período anterior; ainda que, provavelmente, esse controle nunca tenha sido excepcionalmente marcante; o que se evidencia pela sobrevivência, ao longo de toda a baixa idade média, de rituais pagãos, por vezes incorporados às manifestações cristãs. O fato é que agora, as pessoas poderiam escolher entre as pregações emotivas dos luteranos e demais grupos reformistas protestantes, e as missas católicas em latim, que em geral, não correspondiam aos anseios da maioria da população.

Para Delumeau a principal fraqueza da Igreja no período antecedente as reformas não estava nos abusos financeiros da cúria romana, nem no estilo de vida, por vezes escandaloso dos altos dignitários eclesiásticos, nem nos desregramentos de certos monges, nem no número seguramente grande, dos padres concubinários. Residia, sim, na muito deficiente instrução religiosa e na insuficiente formação dos pastores de almas, que freqüentemente eram incapazes de ministrar de forma eficaz os sacramentos e de apresentar de modo válido a mensagem evangélica. Daí podemos entender que a religiosidade popular nos inícios da época moderna era muito mais ritualizada do que sentida. As pessoas acreditavam sinceramente em Deus e no intermédio da Igreja, o que de forma nenhuma significava barreira na hora de procurar auxílio de curandeiros, fazer uso de simpatias e sortilégios, ou de vestir-se de pároco no carnaval. 

Segundo Burke, uma vez que os protestantes atentam para essa carência religiosa, ganham espaço em várias áreas da Europa. As pregações luteranas, por exemplo, eram repletas de cânticos e leitura de salmos nas línguas locais, o que agradava os ouvintes. A Igreja Romana teria percebido a necessidade de renovação no tratamento com os fiéis tardiamente, o que não a impediu de mover também sua reforma, clarificando os ensinamentos e a doutrina católica por meio de catecismos, além de se preocupar com o preparo dos padres, que passaram a ser formados em escolas especiais, os seminários. Do ponto de vista de Delumeau, os fiéis impunham-se, mais que outrora, à atenção dos responsáveis pelas almas. E é nesse sentido que ele verifica a ascensão de uma devoção popular mais interiorizada.

Peter Burke, por sua vez, não acredita que essas reformas religiosas necessariamente significaram a imposição dos anseios dos fiéis a seus líderes. Mesmo considerando aspectos positivos das reformas, como a tradução da Bíblia para línguas vernáculas e o crescimento da alfabetização, verificado, sobretudo, em áreas protestantes, o autor inglês considera, que esse catecismo mostrou-se negativo no sentido de minar a cultura popular tradicional, normatizando suas manifestações e criando modelos de conduta repressivos, ou seja, proporcionando o que ele chama de ‘a vitória da quaresma sobre o carnaval’. Na verdade, conforme argumenta Peter Burke, a busca interna de Deus e a idéia de um relacionamento direto com Ele são contribuições positivas do humanismo às reformas, o que, no entanto, não significava, para a maioria da população, que tal envolvimento com Deus implicasse num distanciamento de seus costumes e tradições culturais. É nessa direção, que a cultura popular tradicional se fez resistente em algumas partes da Europa durante muito tempo, permitindo, assim, que rituais de origem medieval, festas carnavalescas e peças de mistérios sobrevivessem às reformas e a interiorização da religião.

Dessa forma, tanto Peter Burke, como Jean Delumeau, identificam um processo longo e complexo de normatização cultural no ocidente europeu, propiciado, inicialmente, pelas discussões do humanismo e pelas reformas religiosas. Para qualificar tal processo, Burke utiliza a expressão weberiana ‘desencantamento do mundo’. Esse desencantamento foi bastante irregular no tempo e no espaço. Segundo Burke, a cultura popular tradicional era resistente. Em muitas áreas, até mesmo protestantes, a festas religiosas e rituais carnavalescos persistiram da forma tradicional ainda em fins do século XVII e no século XVIII. Voltando-se para o objeto de análise da presente reflexão, que é a religiosidade na sociedade colonial, fico a imaginar o Brasil setecentista; ou até mesmo oitocentista, onde provavelmente festas populares e religiosas prosseguiram apresentando muito do "folclore" tradicional original, sendo frágil a fronteira entre popular e erudito, sagrado e profano. Aqui, essa certa interiorização da religião, verificada principalmente a partir de meados do século XVII na Europa, estava longe de ser um dado efetivo. A religiosidade na América Portuguesa, assim como o catolicismo lusitano, caracterizaram-se por uma natureza exteriorizada das manifestações de fé.

Esse caráter pouco interiorizado da religiosidade colonial é evidenciado num artigo de Luiz Mott, também publicado no primeiro volume da coleção ‘História da Vida Privada no Brasil’. Em Cotidiano e Vivência Religiosa: entre a capela e o calundu, Mott traça um perfil das manifestações religiosas no seio da sociedade colonial. Este autor julga que a religiosidade luso-brasileira desenvolvida na América Portuguesa foi marcada antes de tudo por uma carência estrutural; carência essa refletida no número insuficiente dos párocos e na pouca instrução que esses possuíam para a orientação das almas, uma vez que os seminários eram pouco comuns na colônia. Além disso, afirma que tal carência contribuiu de um lado à maior indiferença e apatia por parte dos colonos frente às práticas religiosas comunitárias, e do outro, ao incremento da vida religiosa privada, que, na falta do controle dos párocos, abria maior espaço para desvios e heterodoxias.

A ritualização religiosa mostrava-se presente em variados aspectos e práticas difundidas nessa sociedade. As moradas coloniais, por exemplo, ainda que rústicas, freqüentemente eram decoradas com símbolos religiosos, imagens sacras, amuletos e quadros, que sinalizavam a presença do sagrado no espaço privado do lar. Nem sempre, no entanto, a relação dos colonos com os santos e símbolos eclesiásticos era a mais ortodoxa. Os xingamentos à Virgem e os ‘maus tratos’ cometidos contra imagens de santos eram uma constante no cotidiano religioso da colônia. Luiz Mott nos conta, que os devotos não atendidos em suas preces, por vezes colocavam seus santos de devoção de castigo, trancando-os em baús escuros ou os virando de cabeça para baixo, até que estes resolvessem atender os pedidos feitos. A penitência, por sua vez, uma das principais manifestações da exteriorização do catolicismo popular, não era menos freqüente. Tanto os indivíduos pobres, quanto as gentes de mor qualidade, apelavam aos martírios a fim de chamarem a atenção da autoridade divina. Já os colonos mais abastados, zelosos ou duvidosos em relação ao destino de suas almas, deixavam importâncias em dinheiro, ou bens materiais, para a celebração de missas pós-mortem. Portanto, entre os fiéis coloniais, existiam desde àqueles mais fervorosos e devotos, até àqueles que cumpriam os rituais católicos menos por devoção, do que por convenção social e obrigação.

As ‘donzelas recolhidas’, por exemplo, eram mulheres que mesmo não estando em conventos, raros na América Portuguesa, faziam questão de viver uma vida de penitências e orações em suas próprias casas, demonstrando um zelo extremado com a vida espiritual e as práticas católicas.

Dentre os casos citados pelo autor, destaco o das irmãs donzelas Maria de Castro e Beatriz da Costa, que viveram na comarca de Alagoas no início do século XVIII. Estas ‘santas’ viveram em clausura perpétua dentro de casa, buscando a perfeição divina através dos mais variados martírios e penitências. Debilitavam o corpo “com os rigores de um perpétuo jejum, banhando-o com rigorosos açoites, usando penetrantes espinhos em lugar de cilícios, passando dias e noites em contínuas orações.” Segundo Mott esse tipo de religiosidade privada é pouco estudada pela historiografia sobre colônia, sendo o número de adeptas de tais práticas bem maior do que se costuma registrar.

Outra expressão religiosa, pouco ortodoxa, é verdade, mas comum no mundo luso-brasileiro ao longo dos séculos XVI –XVIII eram os constantes apelos às feiticeiras, benzedeiras, simpatias e mandingas. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), única legislação eclesiástica em todo o período colonial, demonstravam especial atenção às feitiçarias e práticas de mau agouro, prevendo punições severas, inclusive degredo, para os adeptos de tais sortilégios. No entanto, a despeito das tentativas eclesiásticas de controlar esses rituais, Mott afirma que no Brasil colonial “em toda rua, povoado, bairro rural ou freguesia, lá estavam as rezadeiras, benzedeiras e adivinhos prestando tão valorizado serviço à vizinhança.” Geralmente, as pessoas que praticavam esses sortilégios eram humildes. Luiz Mott cita o caso de uma pequena vizinhança rural em Pernambuco, que em meados do século XVIII possuía uma centena de cristãos que praticavam abertamente variada gama de bênçãos proibidas. Pretas forras benziam mau olhado, brancos, pardos, negros livres e escravos realizavam toda a sorte de benzeduras. Além do ensinamento de simpatias amorosas, uns “curavam carne quebrada”, outros “ventre caído”, “bicheiras”, “baço”, e o que mais fosse solicitado pelos colonos nesse mundo desprovido não somente de instrução espiritual, mas em grande parte de cuidados e conhecimentos médicos.

De acordo com Luiz Mott, o baixo clero geralmente demonstrava indiferença em face desses rituais condenados pela legislação eclesiástica, quando não os estimulava de alguma forma. A própria Inquisição, em algumas ocasiões, agiu com brandura frente a tais desvios tão comuns na América Portuguesa; talvez por perceber se tratar menos de heresia do que de falta de recursos. O mesmo ocorria com rituais heterodoxos tribais, de origem nativa ou africana, que por vezes implicavam em idolatria de divindades estranhas ao catolicismo, quando não ao próprio diabo. Ainda assim, os adeptos dos Calundus procuravam se preservar de possíveis ameaças eclesiásticas ou inquisitoriais, praticando seus ritos à noite, em lugares afastados. Mas, se essas pessoas fossem acusadas de negligenciar a religião católica, antes delas seriam os próprios padres, uma vez que, não raro, resvalavam na disciplina religiosa. A confissão, um dos sacramentos fundamentais da Igreja, sobretudo a partir de Trento, por vezes era ouvida dentro da sacristia, no alpendre das casas, ou até mesmo em redes. Isso quando os padres não tornavam público o assunto da confissão, ou pior, solicitavam suas penitentes para a prática de ‘atos impuros’. De qualquer forma, tanto a excessiva devoção das ‘donzelas recolhidas’, como as práticas populares de benzeduras e calundus, ou ainda, a insólita espiritualidade demonstrada por certos párocos, revelam, como já tenho afirmado, o caráter pouco interiorizado da religiosidade no mundo colonial luso-brasileiro. Nesse sentido, Trópicos dos Pecados, outro trabalho de Ronaldo Vainfas, consiste em uma preciosa oportunidade de contato com a memória colonial, através de personagens não muito convencionais, tais como fornicários, bígamos, e sodomitas; mas, especialmente ricos para o entendimento da natureza dessa religiosidade desenvolvida na América Lusitana.

O que ocorre é que, a partir do Concílio de Trento (1563), a Igreja Católica, de um lado, vai investir na formação espiritual dos padres, e, de outro, reforçar sua posição doutrinal frente à direção das almas. Assim, dentre as principais resoluções, Trento reafirma a autoridade papal e concede ao matrimônio status de sacramento. A religiosidade popular, por sua vez, frouxa, e em muito misturada com ritos e costumes pagãos, necessitava ser refreada, moldada, depurada. É nessa atmosfera, que a Inquisição Ibérica passa a se preocupar com os comportamentos, particularmente com os comportamentos sexuais; aqueles que, de alguma forma, infligiam os santos mandamentos (e por que não dizer as convenções sociais), e que, portanto, configuravam erros de fé.

Desse modo, bígamos, sodomitas, fornicários, entre outros, passaram ao posto de ‘candidatos’ a hereges. Diferente não foi na América Portuguesa, ainda que o Novo Mundo, conforme o exposto por Ronaldo Vainfas, estivesse mais inserido na atmosfera de expansão comercial européia, do que no processo de normatização cultural analisado por Peter Burke. Em todo caso, o espírito reformista do século XVI chegou ao ultramar antes mesmo de Trento, através dos incansáveis padres da Companhia de Jesus. E é justamente a ação inquisitorial ibérica sobre as moralidades sexuais dos colonos, o objeto de análise e questionamento de Vainfas nesse trabalho. O que me interessa no momento, contudo, é frisar o fato de que, grande parte desses ‘candidatos’ a hereges, não tinham a intenção de transgredir os dogmas católicos, muito pelo contrário.

Os bígamos, por exemplo, conforme sugere o autor, deviam amar, e muito, o matrimônio; pois se assim não fosse, por que se casariam tantas vezes? Os fornicários, como ‘bons’ cristãos que eram, não admitiam desrespeito com moças direitas e mulheres casadas, no entanto, não viam pecado em se deitar com as solteiras (solteira não no sentido de hoje, mas como mulher pública, sem compromisso com família), identificadas, sobretudo, na imagem das escravas, nativas, mulatas e negras forras. Esse último fato, sem dúvida, revela o estigma social a que estavam submetidos escravos e mestiços, mas, de forma alguma, configura intenção de subverter o sacramento do matrimônio. Por outro lado, os acusados de sodomia, ainda que entre eles existissem pecadores convictos, talvez fossem menos produto da devassidão dos trópicos, do que vítimas da opressão escravista e social a qual muitos estavam submetidos. Na verdade, a inquisição rastreava heresias em falas populares, culpabilizando as moralidades de gente simples; gente essa que, no ultramar português, estava longe de ser atingida pela devoção moderna em desenvolvimento no mundo europeu a partir do século XVI.

Esta constatação, ao meu ver, revela um choque entre tradições diferentes: uma sociedade majoritariamente oral e sem grande instrução religiosa, obrigada a sujeitar-se às convicções de uma cultura erudita, representada na ação eclesiástica dos visitadores diocesanos e da inquisição lisboeta. Contudo, essa autoridade eclesiástica oficial, a despeito de sua erudição e esforços pouco sistemáticos (com exceção da Companhia de Jesus, representante, mas do que qualquer outra ordem regular, do espírito tridentino), não foi capaz de romper, na América Portuguesa, a frágil fronteira entre sagrado e profano. No fundo, a religiosidade exteriorizada, que aqui se desenvolveu ao longo do período colonial, é herdeira do Antigo Regime português e possui, em sua essência, a ritualização das coisas da fé.

Como apenas citei o trabalho de Mariza Soares, Devotos da Cor, não poderia deixar de retomá-lo nesse momento. Neste livro, a autora analisa as relações sociais e identidades étnicas desenvolvidas em torno de uma irmandade de negros no Rio de Janeiro do século XVIII, que congregava em si devotos oriundos da atual região do Daomé, denominados genericamente de makis. É um trabalho original, primeiro por que a documentação reunida pela autora, relativa a grupos étnicos do atual Daomé no século XVIII, é inédita e vem iluminar as pesquisas sobre escravidão e tráfico negreiro no Rio de Janeiro desse período. Por outro lado, mas não menos importante, as irmandades, ainda pouco estudadas pela historiografia, são elementos relevantes à compreensão da religiosidade colonial, uma vez que constituíam espaços especiais de devoção leiga. Distintas das ‘Ordens Terceiras’, que eram subordinadas, institucional e espiritualmente, a uma ordem religiosa determinada, as Irmandades eram regidas por estatutos independentes, os chamados compromissos, que necessitavam, no entanto, de aprovação régia por meio da Mesa de Consciência e Ordens. Mas o que convém destacar aqui, conforme nos coloca a autora, é que essas Irmandades, fossem elas de ‘pretos’ ou não, são marcadas pelas regras sociais e de hierarquia do Antigo Regime. Novamente, apontando para o caráter ritualizado da religiosidade colonial, Mariza Soares diz que “na Cidade do Rio de Janeiro, como de resto em todo o império português, as Irmandades de ‘pretos’ (forros e escravos) fazem procissões e funerais pomposos, escolhem reis e rainhas, e organizam suas ‘cortes’ através dos reinados da folia.” Antes de representarem um sincretismo religioso, essas instituições de devoção leiga dos ‘pretos’ simbolizavam a reelaboração de identidades e a incorporação, verificada em todos os níveis sociais, dos ideais de sociedade típicos de Antigo Regime.

O Dicionário do Brasil Colonial, por sua vez, define irmandade como um modelo associativo de fiéis, surgido no contexto da reforma Tridentina, e que, sob o influxo de fatores diversos, tais como a valorização da religiosidade leiga, a difusão do culto aos santos e os esforços dos missionários na evangelização das populações, se difunde por toda a Europa ao longo do período moderno. Em Portugal, essas associações se faziam presentes desde a época da expansão marítima, atingindo, portanto, seus domínios ultramarinos.

As irmandades foram bastante difundidas no mundo colonial brasileiro, principalmente nos séculos XVII e XVIII. Além de configurarem redes de sociabilidade e solidariedade entre seus membros, as Irmandades reproduziam as principais distinções profissionais, econômicas, jurídicas e étnicas vigentes na América Portuguesa. Como bem lembra o verbete do referido dicionário, essas instituições perpassaram de alto a baixo a sociedade colonial, preservando a natureza desigual das sociedades de Antigo Regime. Esse fato é evidente nas famosas disputas entre associações de uma mesma localidade, que pretendiam se distinguir uma das outras em busca de privilégios. Dessa forma, investiam altas somas na construção e ornamentação de igrejas-sede, além de disputarem lugares de maior projeção nas procissões solenes dos festejos públicos.

Concluindo, a ritualização religiosa característica da América Portuguesa, verificada não somente nos costumes e práticas cotidianas descritas por Ronaldo Vainfas e Luiz Mott, mas também nas pomposas procissões e festas religiosas promovidas pelas irmandades; aponta para uma sociedade fortemente marcada pelas regras de sociabilidade do Antigo Regime. Portanto, a religiosidade colonial, bem como as formas assumidas por ela no seio dos diferentes grupos sociais, está inserida numa realidade onde as aparências importam mais do que as evidências. Como bem resume o Dicionário do Brasil Colonial, as sociedades de Antigo Regime, e dentre elas a sociedade luso-brasileira desenvolvida nos trópicos, concebiam a vida como uma liturgia, uma encenação permanente dos mesmos gestos e atitudes tomados pelos antepassados, num mundo ainda encantado, dominado pela magia e religiosidade. Mundo esse, aliás, fruto do predomínio de uma cultura majoritariamente oral, destituída de consciência histórica, como diria Hans Georg Gadamer, e, que, nessa perspectiva, situava a religião como o instrumento quase exclusivo para estabelecer as identidades e interpretar a realidade. Sendo assim, dizer que os homens coloniais possuíam uma religiosidade exteriorizada, ou melhor, pouco interiorizada, fossem eles livres ou cativos, proprietários ou despossuídos; não significa necessariamente afirmar que eram débeis ou descrentes em matéria de fé, mas, antes, que viviam a fé dentro dos limites impostos a eles pela lógica do Antigo Regime. Enfim, “na análise da religiosidade colonial deve-se procurar penetrar na natureza dessa aparente exterioridade.”






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