domingo, 13 de novembro de 2011

Anotações ociosas sobre cultura de massa

Por Jairo Lima

Em um conjunto de ensaios muito conhecido, Apocalípticos e Integrados, Umberto Eco desenvolve uma ampla discussão sobre a cultura de massa (conceito genérico, ambíguo e impróprio, na sua própria opinião), que está longe de haver esgotado os seus problemas. Mas formula indagações e proposições ainda válidas para um debate.
Começando por eximi-lo de formular o falso problema de se é bom ou mau existir a cultura de massa, e sim, perguntar, como o próprio Eco: qual a ação cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular valores culturais.

Logo se vê que o problema é mais filosófico e sério que a simples História, para usar expressão de Aristóteles, na sua Poética. É de estética, portanto, que se trata. De fortalecer o pensamento, a educação dos sentidos. Neste campo, os recentes e ainda incipientes avanços dos meios tecnológicos contribuem em muito para rever e enriquecer diversos dos temas propostos por Eco e Abraham Moles, entre muitos outros estudiosos do assunto. A chamada cibercultura põe em xeque ou em choque a mídia.

Já não se trata de mero maniqueísmo que oporia os adeptos entusiasmados de uma cultura de massa a nostálgicos elitistas. Nem novos aristocratas contra uma massa heterogênea de burgueses e pobres. O que se observa nos dias atuais é o rumo para um tal estado de coisas em que esses conceitos e outros como coletividade e individualidade sofrem uma transformação evidente, e, dentro disto, a imprópria e genérica cultura de massa.

Sabe-se que um dos divertimentos prediletos de artistas e teóricos, durante boa parte do século passado e neste século, foi profetizar a morte da arte. Mas o que ocorreu foi justamente o inverso: uma superabundância de seus meios e o desenvolvimento de estéticas quase que na quantidade dos indivíduos. Sem que, na maioria das vezes, a arte tivesse nada a ver com isso. Tantos foram os rótulos que essa indústria produziu para as multinacionais do pensamento que poderia perfeitamente se falar de uma era pós-estética, de uma pós-produção, numa época, a de hoje, em que termos como modernidade e originalidade estão passados, sem o caráter adjetivo ou substantivo, que tantos quiseram dar na tentativa de sua hegemonia, mas simplesmente histórico. A própria idéia de História sofre, como vem sofrendo há décadas, alterações significativas.

Deve-se falar no fim da hegemonia da tal cultura de massa. O esgotamento de uma era de passivos, para um período de ativos produtores e intérpretes de arte. Para isso, o próprio funcionamento da mídia vai por assim dizer alterar-se. Até agora os meios estiveram muito aquém. Ou como diz com melhor ciência o filósofo Jacques Bouveresse: A única coisa de que se pode acusar a mídia é de não fazer o que deveria fazer, isto é, informar. Naturalmente, antes de mais nada, isso significa informar-se.

Há uma conhecida blague do escritor Oswald de Andrade, para quem a massa um dia consumiria o biscoito fino que ele dizia fabricar. Concluindo-se o século, a piada não se tornou profecia. Continua sendo uma piada. O trocadilho continuou também incólume. Mas não a massa, nem a cultura que ela representa. A despeito do escritor paulista não haver produzido biscoitos finos (nem no sentido literal, nem no metafórico), nem a massa os ter consumido.

Ambos alimentaram-se de produtos falsos, que começou por estabelecer um abismo entre o estético e o ético, e nesta última falta foi coerente, pois tentaram vivificar uma arte e um pensamento cimentados no engodo mútuo.

Falar do fim da tirania da cultura de massa parecerá estranho apenas a um indivíduo que ignore o que acontece no mundo, à sua volta, ou a um palmo adiante do nariz. Se a ele não for possível ainda vislumbrar ou enxergar um brave new world em que o gosto não seja ditado pela vulgarização (isto é, haja realmente gosto), talvez seja capaz de farejar um outro tempo e espaço, que há muito são engendrados, com a contribuição do avanço das novas tecnologias, quando já não há separação entre produção, difusão e interpretação das obras.

Embora na aparência seja o território da democracia o que fez a cultura de massa foi dissolver as ágoras, e não criá-las. Foi fraturar o coletivo, não afirmá-lo. O indivíduo longe esteve de ter voz. O que surge é um novo sentido coletivo e para o indivíduo. O que se teve até agora foi aquele tipo de “igualdade” atacada por Adorno: A comunicação providencia a igualitarização dos homens através do seu isolamento, existindo num estado de coisas referido por Habermas, que fala na colonização do mundo vivido.

A chamada indústria cultural viveu a serviço dessa pulverização do medíocre, ou mesmo de uma cada vez mais primária puerilização, com as bênçãos da estupidez togada. Até esgotar-se. Exaurir os seus vazios. Tudo guindado pelo baixo nível de informação (e formação, uma vez que universidades e escolas são também parte da mídia).

Se a cultura de massa, na visão de Eco, é “anti-cultura”, o seu esgotamento implica não simplesmente no seu fim, mas numa volta à cultura. Como os poemas de Homero que recuperam a Grécia para a cultura depois de séculos de trevas. Na ressurreição não do indivíduo, mas do homem; não somente do homem, da sua humanidade. Para isso, cumpre aceitar a provocação de René Garrighes, antevista no Ensaio para fundar uma moral e uma política a partir da poética de J. S. Bach e de Brueghel, o velho. Em um novo classicismo, que se anuncia, obras como as de Bach não devem ser abandonadas aos especialistas. Elas escondem recursos que ainda não foram explorados e que poderiam trazer de volta a confiança ao homem moderno, contribuindo para que ele tenha fé em si mesmo.


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