quarta-feira, 16 de novembro de 2011

"A África fantasma",de Michel Leiris

Por Jérôme Souty

Em 1930, Michel Leiris (1901-1990) é um jovem intelectual e escritor parisiense, um pouco dandy, que freqüenta os meios artísticos e participa do movimento surrealista. Introvertido e consciente de ser « um ocidental desconfortável na própria pele », ele almeja escapar dessa condição buscando outros horizontes. Sua amizade com o etnólogo Alfred Métraux e o escritor Georges Bataille lhe desperta o interesse pela etnologia. Ele ainda desconhece a África - apesar de ter viajado ao Egito alguns anos antes - e a prática da pesquisa de campo.

Recrutado como secrétaire-archiviste (assistente e arquivista) e encarregado das entrevistas etnográficas, Leiris embarca na missão científica francesa que atravessa a África de Oeste à Leste, de Dacar a Djibuti, do Atlântico ao Mar Vermelho. Durante vinte meses, entre 1931 e 1933, entre o trópico do câncer e o equador, a missão percorre uma boa parte do empório colonial francês da África (AEF e AOF). O deslocamento é feito de carro, a pé, de barco, de trem, de burro... qualquer meio de transporte é requisitado. Nesta viagem duas estadias são prolongadas: no país Dogon, em Mali (nesta época Sudão francês), e em Gondar, na Etiópia (na época sob dominação italiana).

Para Leiris, o primeiro resultado desta experiência é um texto longo - quase 700 páginas nesta edição brasileira-, denso e inclassificável. Aparentemente é um diário de campo que relata o cotidiano da equipe, os problemas logísticos da missão, as próprias pesquisas de Leiris e suas relações com os informantes e tradutores, suas anotações de intuições fugazes ou de reflexões com propostas iniciais de análise. Mas o texto também é uma crônica íntima. Ele registra suas impressões, suas angústias, trechos de seus sonhos, lembranças da vida parisiense… Como observa André Pinto Pacheco, corajoso tradutor deste documento, « a prosa de Leiris mistura o literário e o coloquial, o impessoal e o íntimo ». A África fantasma, que articula viagem científica e autobiografia, se insere no duplo projeto intelectual e pessoal mantido por Leiris ao longo da sua vida: a literatura e a antropologia. Durante anos Leiris desenvolverá o trabalho autobiográfico iniciado com este livro (ver A idade Viril -1939, La Règle du Jeu - 2003).

A missão Dacar-Djibuti dirigida pelo etnólogo Marcel Griaule reuniu uma dezenas de pessoas, permanentes ou transitórias, a maioria delas cientistas[1]. Certamente, se trata de um programa de estudos etnográficos e lingüísticos. Mas o livro nos revela que esta missão é também uma vasta empresa de coleta de objetos destinados a enriquecer as coleções do Museu de etnografia do Trocadéro - transformado em Musée de L’Homme em 1937, cujas coleções são hoje acolhidas no novo Musée du quai Branly. A missão leva a antiga imagem positivista do erudito explorador, quando conhecer significava recensear, classificar, repatriar… Caixas e caixas de objetos foram pouco a pouco levadas para a França. Os membros da missão compravam todos os tipos de coisa (objetos artísticos e religiosos, elementos da cultura material, roupas, brinquedos de criança, etc.). Às vezes, eles requisitavam objetos fazendo uso de chantagem e outras formas de pressão, chegando até a roubar ou saquear: furto puro e simples de fetiches no Benim ou Mali, de estatuetas na região Dogon, de pinturas religiosas arrancadas nas igrejas de Gondar, na Etiópia... Leiris muitas vezes se envergonha deste comportamento: « Ainda não nos aconteceu de comprar de um homem ou uma mulher todas as suas roupas, deixando os nus pela estrada, mas isso certamente irá ocorrer ». Mas por um momento ele mesmo confessa sentir certo prazer neste tipo de sacrilégio: « o que me impele é a idéia de profanação... ».

Leiris suporta mal o que vê na colonização e na exploração dos colonizados. A respeito dos funcionários na colônia ele percebe « a mesma existência mesquinha [que na metrópole], a mesma vulgaridade, a mesma monotonia e a mesma destruição sistemática da beleza », notando que « Missionários e comerciantes se esforçam em corromper o país ». Sua lucidez crítica (e muitas vezes autocrítica) é devastadora: « Tenho horror a este mundo de estetas, moralistas e suboficiais. Nem a aventura colonial, nem o devotamento à ‘Ciência’ serão capazes de reconciliar-me com uma ou outra dessas categorias ». Mesmo desiludido com os objetivos e procedimentos da ‘ciência’, ele se mantém concentrado nas suas pesquisas e investigações: as práticas de circuncisão, as sociedades de crianças em Bamako, os segredos das máscaras e das ’’sociedades de homens’’ no país Dogon (ver La Langue secrète des Dogons de Sanga -1937), o fenômeno do transe de possessão pelas diversas entidades, deuses ou gênios (dyidé, ollé horé, vodouns...), e em particular os zar, em Gondar (ver La possession et ses aspects théâtraux chez les Ethiopiens de Gondar -1958).

A sensação de estar em “defasagem’’ é quase sempre presente. No Senegal, por exemplo, ele remarca: « As pessoas se divertem muito com nossas perguntas, que lhes parecem improváveis, de tão fúteis. Ocorre o mesmo com nossas compras, pois todos os utensílios que possuem são rudimentares -eles sabem disso- e, aparentemente, não são feitos para atrair os estrangeiros ».

Na África a comunicação e a convivência com os Africanos em nível igualitário se revelam difíceis, tanto por causa da sua condição de branco representante do poder colonial como, às vezes, por causa do seu próprio constrangimento. Leiris consegue se relacionar mais facilmente com as crianças, sempre alegres. As situações calorosas ou burlescas e a magia das narrativas o encantam. Sempre em busca das formas de evasão do cotidiano, ele privilegia as situações poéticas e as manifestações do sentimento religioso. No país Dogon, por exemplo, em Bandiagara, seu encontro com este poderoso sentimento místico, que lhe atrai, ocorre de maneira intensa. A efervescência dos transes, em particular a convivência com os possuídos em Gondar, lhe permite essa evasão. A respeito da possessão, ele revela que « Preferia ser possuído a estudar os possuídos; conhecer carnalmente uma ‘zara’ a conhecer cientificamente todas suas circunstâncias. O conhecimento abstrato, para mim, nunca deixará de ser apenas a pior das hipóteses… ». No entanto, ele não consegue se entregar totalmente a essa religiosidade efervescente, por muitos motivos: a sua educação (que ele amaldiçoa), o seu estatuto de europeu e o seu mal-estar.

Cerca de oitenta anos após esta viagem, qual é o interesse de ler A África Fantasma?

Como verdadeiro diário de bordo de uma missão científica, o livro traz um material importante sobre a história da antropologia. Trata-se da etnografia das sociedades africanas, mas também da etnografia do grupo de pesquisadores no contexto colonial. Provavelmente pela primeira vez, um livro mostra os bastidores da produção científica, revelando aspectos silenciados da pesquisa, procedimentos nada gloriosos, nobres ou desinteressados... Os métodos interrogatórios de Griaule são muitas vezes autoritários e brutais. Ele não hesita em pedir aos Africanos para fazerem seus rituais sob encomenda, ou simularem sacrifícios, etc. Apesar de tudo esta expedição foi considerada um sucesso. Depois Griaule vai se tornar o leader da etnologia africanista francesa e especialista dos Dogons (retornando muitas vezes à Sanga e Bandiagara para pesquisar durante anos). A equipe de Griaule tem também o mérito de propor um possível modelo alternativo à tradicional e individual « observação participante » de tipo anglo-saxã: um modelo da pesquisa intensiva e sistemática numa área delimitada com muitos pesquisadores trabalhando de maneira coletiva e em sincronia.

Fato novo na época, A África Fantasma prioriza a subjetividade na produção do conhecimento. Leiris defende a tese de que é pela subjetividade, levada ao seu paroxismo, que se alcança a objetividade. As interrogações existenciais e as introspecções de Leiris, o seu egocentrismo, as suas obsessões eróticas e frustrações sexuais, podem parecer cansativas e até mesmo irritar o leitor. Mas o senso de humor do autor, que se manifesta tanto nas descrições exteriores como na sua auto-análise, imprime certa leveza irônica ao texto. Leiris narra muitas anedotas picantes e gostosas.

Sobretudo, através da escrita e do trabalho da língua, ele se torna capaz de enfrentar um olhar retrospectivo, auto-crítico. Trata-se de uma forma de reflexividade que nesta época ainda era pouco comum, a fortiori na área da antropologia – pois a disciplina postulava o distanciamento como condição da objetividade. Apenas a partir dos anos 1980 e 1990, com a crítica deconstructivista e ‘pós-modernista’, que a introdução de uma necessária reflexividade começa a ser levada em conta.

Apesar deste diário ter sido escrito no calor dos acontecimentos, com uma ambição a priori mais documentária que literária, (o texto não foi reescrito), o interesse literário é evidente. Leiris se dedica e se revela na escritura, escrevendo com muita regularidade e constância. Às vezes, o caderno de campo lhe parece « o mais odioso dos grilhões », mas em geral é um passatempo necessário e agradável, e pode-se dizer que escrever representa para Leiris uma forma de catarse.

« Desde a origem, ao redigir este diário, lutei contra um veneno: a idéia de publicação » escreve o jovem etnólogo francês. Mas, logo depois do fim da viagem, em 1934, o texto é publicado. A coragem e a honestidade intelectual do autor em publicar este diário são notáveis. Deve-se lembrar que o caderno de campo de Malinowski, por exemplo, um documento fascinante -que nunca foi escrito para ser publicado- somente foi editado anos depois da morte do seu autor e contra a sua vontade.

Marcel Griaule, além de não gostar da maneira como Leiris exibe seus tormentos psicológicos, se irritou muito com a publicação deste texto que não esconde a face obscura da expedição. Griaule rompeu relações com Leiris. Muitos antropólogos ficaram perplexos e incomodados com essa publicação. Prova suplementar da liberdade de tom e do poder subversivo deste diário, o livro foi jogado à fogueira durante a ocupação nazista.

[1] Como membros permanentes, além de Leiris e Griaule, estão: o naturalista Larget, o técnico e cineasta Lutten. Os outros membros são o naturalista Faivre, os lingüistas Mouchet e Lifchitz, o etnomusicólogo Schaeffner, o pintor Roux e enfim Oukhomsky.
(*) Jérôme Souty é doutor em antropologia social, EHESS, Paris e faz Pós doutorado no Instituto de Medicina Social da UERJ


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