sábado, 12 de novembro de 2011

Resenha de livro: "Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas",de Naara Luna.

 Por Carmen Susana Tornquist (*)    

O livro de Naara Luna foi lançado em 2007, pela Editora da Fiocruz, e faz parte da coleção Antropologia e Saúde, ao lado de outras referências fundamentais no campo da chamada saúde reprodutiva e dos processos de medicalização dos corpos femininos. Esta coleção expressa o desejo da Editora de estimular, a longo prazo, o crescente, porém, difícil diálogo entre ciências sociais e antropologia e ciências da saúde e saúde coletiva (grifos meus). Creio ser importante tomar em consideração este aspecto, ainda que seja difícil saber como o livro será lido e interpretado pelos profissionais da saúde, que vem compondo este novo campo de saber-poder biomédico, tão prestigioso quanto heterogêneo, como nos mostra a autora.

Embora dialogue todo o tempo com a literatura de cunho feminista e dos estudos de gênero, a autora estabelece uma interlocução prioritária com a antropologia, campo disciplinar no qual Naara especializou-se, não sem antes ter feito teologia, e é é fruto de um significativo percurso de pesquisa e de formação desta jovem antropóloga reconhecida como uma das pesquisadoras do campo de estudos feministas e/ou de gênero que tem se dedicado a refletir sobre o complexo e fascinante tema das assim chamadas novas tecnologias da reprodução (NTR) ou da reprodução assistida. Campo este no qual muitas/os antropólogas/os e outras/os cientistas sociais vem refletindo há anos chamando atenção para um dos pontos cruciais que é o da imensa medicalização da saúde das mulheres e da reiteração da maternidade como um destino biológico. O objetivo da autora é “fazer uma análise antropológica das novas tecnologias reprodutivas e da clonagem humana” a partir das representações de profissionais de saúde de quatro serviços públicos no sudeste do Brasil, voltados a promover a reprodução humana através de procedimentos que “substituem a relação sexual”, e das usuárias destes serviços, durante os anos de 2002 e 2003. No campo da antropologia, esta temática tem viabilizado um revigoramento significativo das teorias clássicas de parentesco, tão seminais para a constituição da disciplina. Daí a propriedade do subtítulo da tese: teorias da concepção, pessoa e parentesco nas novas tecnologias da reprodução, a meu ver, mais adequado do que o escolhido para o livro. Aliás, um dos pontos altos do livro é justamente a recuperação (para nós, antropólogos/as) ou a apresentação(para os profissionais de saúde e leitores em geral) de autores clássicos que se debruçaram sobre as intrincadas, complexas e fascinantes teorias da concepção e do parentesco partilhadas por outras sociedades.
A descrição dos autores que tratam das teorias da concepção parece muito adequada ao objetivo da coleção. Neste sentido, cabe destacar a importância do sub-capítulo Teorias da concepção (cap.4), que me parece ser, junto com os dois últimos capítulos, o mais importante no sentido da explanação do olhar antropológico a pesquisadores de outras áreas. Ele traduz a complexidade das questões que estão envolvidas nas NTR, tanto no âmbito do parentesco propriamente dito, quanto nos desdobramentos deste para relativização das teorias ocidentais acerca dos vínculos entre sexualidade e reprodução, das formas de pensar a “fisiologia” feminina/masculina, e da própria noção de construção da pessoa.
Um aspecto que chama atenção é a própria noção de “filhos sem sexo”, ou “reprodução sem relação sexual”, que a autora utiliza com freqüência. Entretanto, entre os casais inférteis/mulheres inférteis, que vivem em conjugalidade estável o problema reside no fato de que as relações sexuais não resultam na reprodução, já que não concebem bebês. Serem casadas, heterossexuais e estarem em idade fértil é condição sine qua non para as mulheres ganharem sua ficha nas longas filas de espera dos serviços analisados. A situação destas é distinta daquela das mulheres inglesas que, nos anos 90, passaram a buscar as Novas tecnologias da reprodução para ter filhos sem ter que vivenciar algum intercurso sexual com homens.[1]
Nos capítulos 4 e 5 são expostas e analisadas as concepções de pessoa e parentesco, de corpo e de concepção, que circulam entre as usuárias, os profissionais e os parentes a quem foram confiados os segredos. E é neles, também, que a autora recorre mais amiúde à literatura antropológica, inclusive aquela relativa à adoção e circulação de crianças, bem como das práticas contraceptivas em geral, temas que fazem coro às NTR e que estão presentes nas referências das usuárias. Aí encontramos uma profusão de informações sobre as técnicas de reprodução, as diferenças entre inseminação e fertilização convencionais e as in vitro e destas entre si e as siglas e expressões que compõe todo um novo jargão médico, acentua os rearranjos permanentes nas especialidades que passam a incorporar estas técnicas, ou aquelas que são criadas ou que migram para o campo biomédico, junto com o crescente peso da formação acadêmica mais especializada neste novo campo de saber-poder e as dificuldades de apreensão dos detalhes da população leiga no assunto, entre elas, as próprias usuárias, cuja formação no assunto se dá em paralelo ao extenuante processo de submissão aos tratamentos.
A autora recorreu à observação e a entrevistas com mulheres, usuárias de quatro serviços públicos de fertilização/reprodução, três em São Paulo e um no Rio de Janeiro, no qual foi feita a etnografia mais longa, que compõem o mapa da peregrinação de mulheres “inférteis”, descritos de forma contextual e sensível pela pesquisadora. Foram feitas 23 entrevistas com profissionais de saúde (não apenas médicos, não apenas homens), com roteiro voltado às questões técnicas e éticas, e 63 entrevistas com usuárias (gravadas e/ou registradas em diário de campo) de camadas médias e de classes populares, feitas no próprio serviço, o que revela a densidade do campo realizado.
Percebe-se o seu constante cuidado em tecer comparações entre representações das mulheres de classes populares e de camadas médias, o que é feito não sem travar um belo diálogo com a tradição dos estudos sócio-antropológicos sobre família e sexualidade no Brasil. A partir deste diálogo é que a autora percebe que, também em seu caso, as mulheres de camadas médias partilham não apenas o mesmo ethos que os profissionais que as atendem - seus “aliados” na luta pela reprodução, mas – e provavelmente, exatamente por isso – desfrutam de privilégios no tratamento interpessoal, ao contrário das mulheres pobres, que, ao revés, costumam ouvir uma série de conselhos pedagogizantes, tendo por tema sua sexualidade, seja de uma forma infantilizadora seja mesmo, violenta:
A médica perguntou: Então, a relação é uma droga? Você não sente nada? Você não goza? Depois, sugeriu que ela deveria melhorar a vida sexual antes de querer ter um filho. Ela respondeu que sentia dor por causa da doença. Contou sorrindo encabulada que tinha relações com o marido quase todos os dias. A médica comentou, depois: ‘Essa mulher quer ter filho com um homem com quem não tem uma relação boa’ (p.123;grifos meus)
Ou seja, apesar de os profissionais, em princípio, serem aliados na cruzada em prol do desejo de um filho biológico, estas alianças não parecem abarcar as mulheres que advém dos meios populares. Este tipo de tratamento, recorrente na literatura, aponta para o que a autora designa, sabiamente, de etnocentrismo de classe. A meu ver, este etnocentrismo se sustenta, justamente, na questão da reprodução, que é uma forma de dizer, também, “sexualidade”, bio-poder. São realmente digas de nota as expressões e as opiniões dos/das profissionais para referirem-se as mulheres pobres: “Essas mulheres não tem perspectiva e não querem ir pra frente. Que chances elas tem de fazer uma faculdade?”, “Elas não conhecem o próprio corpo”, “Essa mulher quer ter filho com um homem com quem ela não tem uma relação boa”; referidas no capítulo 3 (A resposta da biomedicina e o engajamento das usuárias). Como se vê, as acusações referem-se à sexualidade das mulheres pobres, às suas formas próprias de dispor de seus corpos e aos significados atribuídos aos filhos e às relações conjugais que estabelecem ao longo de suas vidas. Neste sentido, cabe lembrar que, muitas vezes em programas ditos de “humanização do atendimento”, os profissionais buscam suavizar as formas de tratamento, chamando pacientes pelos nomes, incluindo expressões de reverência nas suas falas[2]; no entanto; estas não são mais do que uma dimensão superficial e infantilizadora: seguem se baseando em representações duplamente etnocêntricas: quanto ao gênero (são mulheres) e quanto à classe (são pobres). O livro é cheio de falas neste sentido:
Em tom de piada os médicos relatavam situações anedóticas, como a de uma mulher que não engravidava, e depois se descobriu que o marido mantinha exclusivamente relações anais com a esposa. (..) Embora o médico comentasse que as pacientes não sabiam contar os dias do ciclo menstrual, conhecimento importante para a ministração de medicamentos e o cálculo do dia fértil, julgavam inútil explicar, partindo do princípio de que elas não entenderiam (p.122)

Naara destaca o notório não-reconhecimento das mulheres pobres como sujeitos de direitos, sujeitos de seus corpos, sexos e escolhas, como mostra este caso flagrante de preconceito e/ou desconhecimento dos profissionais de saúde acerca das experiências culturais e das escolhas destas mulheres que são as principais usuárias dos serviços públicos e maioria da população brasileira. Para além do aprendizado do controle das emoções e do aprendizado das técnicas corporais, como coloca autora, a formação médica não se modificou nos últimos tempos, com seu quase congênito etnocentrismo de classe. A herança higienista também no campo das NTR e dos serviços públicos se renova e se articula com elementos do “admirável mundo novo”, preservando inabalável a permanência da velha representação da maternidade, aquela, da mater dolorosa, da mãe sacrificial, da mulher- útero-ambulante. E as entrevistas ressaltam um tom muitas vezes heróico, comum em narrativas feitas para um interlocutor interessado como a antropóloga e profissionais, remetendo à freqüente imagem da mulher valente, que faz tudo para ter um filho de seu próprio ventre. E aqui se destaca a centralidade do corpo grávido nas representações das usuárias, mais decisivo na conformação da maternidade do que a fertilização “fora do útero”, viabilizada pela tecnologia.
As lutas travadas em prol do filho são narradas de forma entre a queixosa e a heróica, e nelas são assinalados uma série de sintomas de desconforto físico e de dor, e um não menos conjunto de emoções extenuantes e estresse emocional, a sensação de que o corpo foi “perfurado”, invadido, peneirado, aplainado: Nosso corpo é uma peneira, diz uma mulher; outra reporta-se à recorrente imagem da figueira sem frutos, arrematando: você vai virar tábua para outros passar, tem que cortar e fazer lenha.
As condições exigidas para admissão das mulheres na fila de espera heteronormativas, tendo como quesitos o estado civil, a paridade e a idade. Os estados inegáveis de estresse e sofrimento psíquico, referidos pelos profissionais e pelas usuárias, parecem ser parte do calvário “natural”, e tem sido fortemente criticados por várias estudiosas, e remetem, sem duvida, ao bem conhecido vaticínio bíblico do gênesis: “por entre dores, parirás teu filho”, alvo da rebeldia dos adeptos do Parto sem Dor na década de 60, e aqui reiterado, em um momento anterior ao parto. Mesmo assim, as mulheres que entregam seus corpos ao corpo médico, não deixam de se perguntar, incessantemente, sobre os limites desta reprodução “sem sexo”, e sobre os limites mesmo do próprio saber médico, em parte porque grande parte dos tratamentos e demorada e infrutífera, suscitando, talvez, os questionamentos teológicos e éticos de forma permanente. Assim, ainda que imersas numa rotina de exames, consultas, procedimentos, cronometragens alheias aos desejos da carne, e pedintes de um filho que seja “seu” (parido de seu corpo), muitas resistem “pequenamente”, nas suas crenças sobre os mistérios da vida: “Médico não é deus. É deus que decide se você vai engravidar ou não” (p.120) Ou ainda, como diz Marilu: Acho que só ficou quem queria ficar. Quem Deus programou para vir mesmo. (p.120 ,grifos meus)
Através das informantes, percebe-se o quanto a teoria monogenética se faz presente nas representações sobre a reprodução, atribuindo um maior valor ao sêmen (noção de qualidade), ou, como já mostraram outro estudos[3], deslocando a chamada infertilidade da mulher para o casal, poupando o “fator masculino” da pecha de esterilidade, ainda que de forma heterogênea e nuançada. Daí, aliás, o primado do corpo grávido e da necessidade do embrião desenvolver-se naquele corpo “oficial”, garantindo a biologia da maternidade, que se dá ao mesmo tempo em que os homens desaparecem do cenário dos serviços, logo a pós a doação do sêmen.
Nos dois últimos capítulos, a autora se debruça sobre a temática religiosa, que vem se impondo ao longo do texto, através das suas próprias informantes, que fazem reflexões acerca das causas últimas do êxito ou fracasso da fertilização. Vemos aqui uma profusão de diálogos e de falas nas quais as mulheres usuárias referem-se à força divina e à participação de Deus nos assuntos referentes à reprodução, ressaltado por Luis F. D. Duarte e na articulação aparece também associada à figura do médico, este personagem que, junto com outros da cena da reprodução “sem sexo”, veio a ocupar um lugar, talvez ainda mais central do que ocupara antes, no longo processo de medicalização da vida: “Ele toca na gente com umas mãos...”; “Parece que é um anjo de deus”. “Parece que como mora um anjo d’Ele nele, que ele é um médico maravilhoso” (p.120) Ou ainda outras duas usuárias: "Abaixo de deus, só os médicos” ou “ Só deus mesmo, e os médicos”.
Quis o destino, que costuma ser generoso com os etnógrafos, que, por ocasião do trabalho de campo, estivesse sendo exibida em horário nobre a novela O clone, na qual justamente questões como clonagem e reprodução assistida estavam em cena, compondo uma das tramas centrais da narrativa. Parentesco e segredo de origem, dois temas constantes nas novelas brasileiras. Seria impossível não observar a centralidade com que temas relacionados ao parentesco são constantes das novelas brasileiras, e como se consolida como um dos principais espaços de divulgação deste lucrativo mercado biomédico, um dos “eixos fundamentais da do modelo econômico e político vigente e hegemônico na contemporaneidade”.[4] Cabe destacar a criatividade com que a autora trabalhou com esta espécie de etnografia da audiência, não em termos clássicos, mas fazendo das novelas da Globo fontes de reflexão e de interlocução mesma com as suas informantes. Ou seja, de forma diluída e a partir das informantes, a autora faz uma análise da recepção de uma das mais populares fontes de informação acerca da reprodução assistida, qual seja, as matérias divulgadas nas mídias, dimensão fundamental para quem trabalha com antropologia em sociedades urbanas. E é por este caminho que Barriga de Aluguel, novela (e expressão) bem mais antiga que o Clone, aparece re-atualizada no momento da pesquisa, presente na memória de todos, incluindo os profissionais. As várias discussões acerca de inseminação convencional, fertilização em laboratório, adoção e gestação de aluguel são reveladoras do quanto à importância de a gestação ser visibilizada e “socializada” através da barriga grávida e, depois, dos seios com leite, reponta como chave na representação das mulheres entrevistadas e reitera a idéia de que as novas tecnologias, para usar uma expressão de Lucila Scavone[5], apesar das novidades, seguem atualizando antigos conflitos, paradoxo que faz da leitura do livro, como diz Jane Russo na apresentação, uma leitura obrigatória para quem pensa tudo saber.

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