sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Um cheiro

Por Joca de Souza Leão
Nosso romântico maior, o lírico e eloqüente Gonçalves Dias evocou na Canção do Exílio o seu saudoso Maranhão, suas palmeiras e seus pássaros, seu céu e suas estrelas, suas várzeas e suas flores, seus bosques e seus amores, seus prazeres e primores. Mas e os cheiros, poeta, esqueceu?
Cheiro não é perfume. Perfume é, por exemplo, o que as rosas exalam (“o perfume que roubam de ti”, como canta Cartola) e cheiro é, por exemplo, o que explode e sobe da terra quente, quando despenca um aguaceiro. Cheiro denso, cheiro forte, cheiro de terra.
Não tem jeito. Todas as vezes que cai um pé d’água e sobe aquele cheiro de terra, entro na máquina do tempo e me transporto pra infância, pra quando eu tinha quatro, cinco anos de idade e morava na Rua Nicarágua, ainda sem pavimento (descalçada, como se dizia antigamente). Já muito adulto, fiquei sabendo que o cheiro de terra não era de terra, mas de ozônio. Não adiantou nada. Minha memória não registrou a informação. Chove forte no chão quente e o cheiro é mais forte, é atávico,  cheiro de terra, cheiro da infância.
Os cheiros vêm de toda parte. Vêm do mato, das árvores, da gente, dos bichos, do sexo, dos lugares, das ruas, das cidades, das casas, das cozinhas, da memória. Até das horas. (Los olores “a las cinco en punto de la tarde” non son los mismos a las cinco en punto de la mañana).
Quando um sertanejo lê em João Cabral de Melo “cheiro de cana cortada” e “cheiro de maresia,” que cheiros será que ele, que ainda não os conhece, imagina? A gente, que é daqui, não imagina, sente. Um tem cheiro doce e melado; o outro, cheiro salgado e molhado. No corpo moreno de uma mulher, Manuel Bandeira sentiu cheiro de areia de praia ao mormaço. O gaúcho Mário Quintana sentiu cheiro no vento, cheiro de vento. Terá sido do minuano? Então era cheiro polar, cheiro frio, gelado.
“O cheiro me faz ser irmã das santas orgias do Rei Salomão e a Rainha de Sabá”, nos confessou Clarice Lispector. “A inspiração é como um misterioso cheiro de âmbar. Tenho um pedacinho de âmbar comigo”. Ah! Era isso, então? E tantos em busca de suas fontes, menina!
Os perfumes nada podem contra os cheiros. “Saia, mancha maldita! Saia, eu já disse!” – ordenou Lady Macbeth para que as manchas lhe saíssem das mãos. Mas bem sabia Shakespeare que os cheiros são muito mais fortes e poderosos, não são coisa de se lavar nem de se evaporar; entranham-se, primeiro, nas narinas, depois, na memória, como tudo que ambiciona a eternidade. “Ainda se sente o cheiro de sangue. Nem todos os perfumes da Arábia serão suficientes para tirar esse cheiro destas mãos” – reconheceu a nobre senhora, como se fora uma reles mortal.
 Disse Camões que a gente saberia que estava na Índia não pelo seu povo diverso, rico e próspero, não pelo “ouro reluzente e fina pedraria, mas pelo cheiro suave e ardente das especiarias”. Cheiro de coentro, cominho, gengibre, folha de louro, cravo e canela, noz moscada, alecrim e pimenta do reino. Cuidado pra não errar o caminho das Índias e desembarcar numa cozinha pernambucana.
Sempre tive bom nariz. “Boa mucosa pituitária”, corrigiria meu pai, bacharel em direito, poeta e cronista bissexto, médico frustrado e charlatão confesso. Quando eu chegava da escola perto da hora do almoço, era comum minha mãe pedir: “João Augusto, dê uma cheirada no arroz pra ver se azedou”. Dependendo da minha sentença, fazia-se outro arroz e aquele virava arroz-doce, com leite de coco ralado e espremido na hora.
Luiz Gonzaga, que conhecia o mister da vida, sabia do cheiro da Carolina, todo mundo caidinho por ela, só por causa do cheirinho: “Carolina, hum,hum,hum”.
Cheiro de mulher…

Nenhum comentário:

Postar um comentário