domingo, 16 de outubro de 2011

Das palavras lavadas com anil

Vicente Serejo
 Fiquei tão comovido com o poema dos azuis que Dailor Varela dedicou ao lirismo antigo desta cena que acabei lambendo os versos com os olhos. Ora, Senhor Redator, pra que negar se sou do tempo do anil azulando as roubas brancas que quaravam ao sol? A memória falhou e então perguntei a Rejane. Não era o Anil Imperial Reckitt. Tinha outro nome que agora fugiu num vôo de pássaro ferido por velhas lembranças de uma infância que adormeceu sem prêmio.

Nem falo do azul índigo, desses anos modernos, dos jeans tingidos e lavados. Talvez - ora quem sabe! - do outro, mais nobre, o azul do lápis-lazúli de velhíssimas tradições mediterrâneas, vindo das antigas plantações de anil. Que importa saber tanto, se o anil da infância não era mais do que uma pedrinha azul, presa numa trouxinha de filó? A ciência, sempre muito bem apurada em tudo, fala do anil entre ondas, só e apenas - um instante mágico entre tons azuis e violetas.
 
Veja, Senhor Redator, por mais prosaico que seja repetir: uma coisa puxa outra. Outro dia, por coincidência, fazendo compras domésticas num supermercado de São Paulo, dei de cara com uma prateleira cheia dos anis Colman. Agora, mexendo na Internet, Rejane descobre que é a mesma fábrica do anil Rechitt. Sim, agora lembro: o anil da infância era Colman. Não posso substituí-lo, falsificar a saudade. Seria ferir um tempo feito de camisas Volta ao Mundo, lembra?

É verdade: lavo de anil esse lirismo que se não é de funcionário público tem a quietude das coisas que não servem mais. É que o azul, Senhor Redator, aqui, é uma fartura. Ao contrário do poema de Manuel Bandeira e, talvez por isso, não me farte desse lirismo comedido que nem ao menos é libertação. Sou um prisioneiro do azul, a sentinela indormida desta pequena e pobre fortaleza diante do mar nesse ofício de esperar o azul das manhãs e das tardes quando anoitecem.

Por isso, nunca esqueci Saint-Exupéry ao pedir que lhe deixassem viver no pequeno silêncio da sua aldeia. Assim é aqui, entre os azuis que tingem todas as palavras, principalmente as esquecidas. A minha aldeia, Senhor Redator, é pequena. Cabe na minha mão. Como deve ser uma aldeia. Ora, como seria uma aldeia grande se grande não se faz uma aldeia? Uma aldeia há de ter um sino a se ouvir em toda parte. Uma aldeia é como uma ilha, cabe num abraço do olhar.

Que intensas lembranças renascem nos campos da alma por conta de um azul anil... Parece que foi ontem. As roupas quarando, refrescadas de vez em quando; azuladas, de tão alvas. Como a roupa da infância. E os azuis passando num lento galope a beira-mar. De que matéria é feita a saudade, não sei. Nem sei se é Colman esse anil que de repente se derramou sobre a crônica e tingiu de azul as recordações renascidas de uma infância hoje tão morte. E tão viva...

 

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