segunda-feira, 31 de outubro de 2011

La Traviata, Verdi e Strepponi

Durante os anos em que Verdi estava trabalhando em La Traviata, ele enfrentou uma situação pessoal que espelhava seu projeto: seu relacionamento com Giuseppina Strepponi, uma antiga prima-dona. Antes que eles se casassem, os aldeões do pequeno vilarejo italiano onde viviam, viam a coabitação dos dois como imoral e vergonhosa. A vida comum deles (que durou mais de cinqüenta anos) influenciou uma das mais trágicas óperas de todos os tempos.

Verdi e Strepponi conheceram-se em 1839, quando Giuseppina era o esplendor de Milão e Verdi era virtualmente um jovem compositor desconhecido. A amizade deles amadureceu quando a soprano, usando sua influência com o empresário do Teatro La Scala, tornou possível a apresentação de Oberto, a primeira ópera de Verdi. Naquele tempo, Verdi tinha um casamento feliz com Margherita Barezzi, com quem havia tido dois filhos. A morte abateu-se sobre a pequena família e, quando Verdi retornou a Milão após ter visto primeiro sua filha, depois seu filho e finalmente sua amada esposa morrerem, ele acolheu de bom grado o conforto espiritual oferecido por Strepponi, uma mulher de rara sensibilidade e capaz de emoções profundas.

Sua voz em decadência fez com que Strepponi se retirasse do palco da ópera, mudando-se então para Paris. Verdi permaneceu em Milão até junho de 1847, quando, a caminho de Londres para a estréia de I masnadieri, passou por Paris. Se Verdi e Strepponi começaram sua intimidade em Paris, ou se continuaram o relacionamento que poderia ter começado em Parma já em 1843, ninguém sabe. A vida em comum dos dois, começou, como a de Alfredo e Violetta, em um apartamento parisiense no verão de 1847.

Com sua "Peppina", Verdi encontrou a felicidade que quase havia esquecido. Sua companheira era encantadora, inteligente, sensível, culta, uma lingüista esplêndida e la parisienne parfaite (a parisiense perfeita), como a chamou um famoso editor de Paris. O casal freqüentava os salões mais importantes onde a popular soprano, capaz de cantar de forma soberba para pequenos grupos mesmo que não fosse capaz de cantar em teatros, interpretava a música de Verdi e tornou o compositor ainda mais famoso em Paris do que já era. Entretanto, o casal logo decidiu evitar a vida pública, preferindo a privacidade da vida do campo. Deixaram a cidade, mais uma vez como Violetta e Alfredo, e foram viver em uma pequena vila em Passy, no país onde eles poderiam ficar sossegados e juntos.

O casal permaneceu em Passy, enamorados um pelo outro e pela vida do campo, até que as notícias das revoluções perturbaram o patriótico Verdi, e ele resolveu voltar para a Itália. Verdi e Strepponi prepararam sua casa em Sant'Agata, onde o compositor comprou uma propriedade, e voltaram à sua terra natal no início de agosto de 1849.

O idílio parisiense terminou, mas não a Traviata da vida privada de Verdi. Como os amantes do romance de Dumas, Verdi e Strepponi enfrentaram padrões morais inflexíveis. Em Busseto os provincianos italianos de mentalidade estreita mantiveram-se afastados da "Violetta" de Verdi, deixando-a sozinha no banco da igreja e evitando-a explicitamente nas ruas. Os fuxiqueiros perceberam, com presumida satisfação, que a saúde de Giuseppina era fraca, um castigo para ela, sem dúvida.

Verdi foi repentinamente atacado por todos os lados, por um grupo de "Velhos Germonts", formado tanto por homens como por mulheres. Verdi não dava atenção a toda a calúnia, muita dela em críticas faladas. Assustadoramente indiferente a todos durante toda sua vida, o distante compositor nem se preocupava nem cuidava da opinião pública, pelo menos não aos olhos dos estreitos camponeses.

Verdi escutava somente os protestos de um homem: seu benfeitor e amigo Antonio Barezzi. Pai da primeira esposa de Verdi, Barezzi era um pai para Verdi também e, quando ele protestou sobre a exposição da amante do compositor (como pensavam os camponeses, embora Verdi e Strepponi vivessem vidas separadas), o idoso Barezzi recebeu de Verdi uma das mais longas cartas escritas pelo compositor. É também uma das mais importantes, pois revela muito da própria mentalidade de Verdi e poderia ter sido escrita por Alfredo Germont para seu pai. Datada de janeiro de 1852, e enviada de Paris, a carta foi impressa pela primeira vez no Copialettere di G. Verdi.

Verdi escreveu: "Você vive em um lugar onde se tem o diabólico hábito de se imiscuir freqüentemente nos assuntos dos outros e de desaprovar tudo que não seja conforme às idéias deles; eu, normalmente, não intervenho, se não for consultado, nos assuntos dos outros, precisamente porque insisto que não interfiram nos meus …

"Não é nenhuma dificuldade levantar a cortina que revelará os mistérios fechados entre quatro paredes e contar-lhe minha vida no lar. Não tenho nada a esconder. Em minha casa vive uma mulher livre, independente, como eu uma amante da vida solitária, que tem a sorte que a defende de qualquer necessidade. Nem eu nem ela damos um a outro conta das nossas ações, mas, por outro lado, quem sabe quais relações existem entre nós? Que assuntos? Que direitos eu tenho sobre ela e ela sobre mim? Quem sabe se ela é ou não minha esposa? ... Quem sabe se é bom ou mau? E se for mau, quem tem o direito de maldizer?"

"Quem sabe se ela é ou não minha esposa? ", pergunta Verdi. O fato é que, em 1852 e durante alguns anos, Strepponi não era a esposa de Verdi. Diversas razões já foram levantadas para a prolongada e desnecessária vida como amantes e esposos.

Nenhum "Germont pai" ficou entre eles. Nem eram casados. O que os mantinha separados então? O remorso de Giuseppina parece ter sido o principal obstáculo entre eles. Não seria muito difícil acreditar que ela tivesse um "complexo de Violetta", se tal coisa existisse. De uma natureza penitente e humilde, Strepponi era também uma amante da La Dame aux Camélias de Dumas, que ela havia lido quando da sua publicação em 1848. Ela havia ssistido, juntamente com Verdi, o drama em sua primeira apresentação em Paris, em fevereiro de 1852, no Teatro de Vaudeville.

"Oh, meu Verdi," escreveu Giuseppina em uma grande carta comovente, "Eu não o mereço, e o amor que você tem por mim é um presente, um bálsamo para um coração que muitas vezes está triste sob a aparência de felicidade. Continue a me amar mesmo após a morte, quando eu me apresentar perante a justiça divina, enriquecida pelo seu amor e pelas suas preces, Oh meu Redentor!" Mesmo um ouvido não orientado pode escutar nas palavras de Strepponi "Continua ad amarmi, amami, anche dopo morta" o eco de interpretação do coração não de Marguerite Gautier, mas de Violetta Valéry.

Violetta não é Marguerite Gautier, que reteve, mesmo em seu arrependimento, um rancor contra "o mundo inflexível". Violetta é Giuseppina Strepponi, humilde, pesarosa, adorando seu redentor. Musicalmente e verbalmente, Violetta é mais fina, mais inteligente, mais sensível que a cortesã delicada de Dumas. O drama de Violetta é o dos amantes, não de uma jovem galanteadora que procura uma ascensão como uma amante profissional. O mundo de La Traviata é a Paris de Giuseppina de 1847, não o de Marguerite. O salão é um salão de amigos, Flora é uma companheira e não uma alcoviteira.

Strepponi teve uma participação na preparação de La Traviata. Sem dúvida, ela é responsável pela sua afinidade com Violetta. Uma carta de 3 de janeiro de 1853, indica que Giuseppina tomou parte da composição da ópera, glorificada aqui, hesitante ali, e, como declara um crítico, "evocando o espírito que melhor respondia ao espírito de seu coração ."

O libretista Piave também conhecia a situação de Verdi e Strepponi muito bem. Ele abriu mão do cinismo pelo sentimento genuíno quando escreveu La Traviata e, quando escreveu a fala torturante de Germont "Il passato, perchè perchè v'accusa?", Piavi pode muito bem ter pensado no sentimento de remorso de Strepponi, cujo passado realmente a acusava, um passado que incluía duas crianças ilegítimas.

Aquela Giuseppina sentiu uma afinidade especial com Marie que nós conhecemos através de suas cartas, falando do seu amor pelo romance. Em seu temor da tuberculose, da morte, da mão punitiva de Deus, ela está perto do personagem de Marie-Marguerite-Violetta. Uma de suas cartas datada de 2 de março de 1853, está assinada como "Il tuo povero Livello", uma frase carregada de um significado impressionante. Livello é um substantivo em italiano, é uma peça de propriedade mantida em aluguel, e parece ter sido usada para referir-se a uma mulher ou cortesã sob a proteção de um amante, cujo "Livello" ela gostaria realmente de ser.

Na Saboia italiana em 29 de abril de 1859, Verdi e Strepponi foram casados pelo Abade Mermillod, terminando assim o pesadelo de sua Traviata pessoal.

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