domingo, 23 de outubro de 2011

Entrevista com Mãe Stella de Oxóssi

Por Agnes Mariano
"No Candomblé é a gente que se supera, não tem que superar o outro"
Trechos retirados do blog
Soteropolitanos Cultura Afro, onde poderão ler a entrevista na íntegra.
Numa manhã de quarta-feira, entre uma consulta e outra, Mãe Stella de Oxóssi nos recebeu na casa de Xangô e falou sobre o sacerdócio, a história do candomblé baiano e do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. A conversa não pôde ser longa, porque, como sempre, uma fila de pessoas aguardava por seus conselhos. Ao seu lado, o inseparável pastor alemão. Iniciada na religião dos orixás há mais de 60 anos, Maria Stella Azevedo dos Santos é mesmo uma mulher singular. Assim como fizeram suas predecessoras no Afonjá, Mãe Stella mantém a tradição religiosa herdada da África com uma seriedade que faz desse terreiro um referencial para todo o candomblé. Uma tarefa que, garante ela, a absorve integralmente. A autora de livros, enfermeira e funcionária pública aposentada tem que dividir o seu tempo entre as atividades religiosas, as consultas e as solicitações de entrevistas, palestras e conferências em vários países. Com voz branda e uma fluência verbal invejável, ela revela a clareza e inteligência que a tornaram uma líder religiosa respeitada em todo o mundo. Mas, para as crianças do Afonjá, ela é apenas a “Tia Stella”.
Agnes Mariano - A senhora foi iniciada muito cedo, com 13 anos. A senhora imaginava que ocuparia um cargo como esse, tão importante? E como a senhora experimentou isso na sua vida?
Mãe Stella de Oxóssi - As pessoas que entram para a crença dos orixás com fé, com consciência do que estão fazendo, elas têm o gosto, a vontade de servir o orixá, de fazer tudo em prol. Eu creio que raríssimas pessoas entram para o candomblé já com a pretensão de ser mãe-de-santo. Quem tem juízo não pensa assim. Porque aí não é uma coisa espiritual, passa a ser uma coisa de superação. No candomblé, é a gente que se supera, não tem que superar o outro, tem que superar a si próprio. Não tem que tentar superar o outro com essa questão de valores materiais, não tem nada disso. E eu nunca tive essa pretensão. A minha alegria era servir ao orixá e à minha mãe-de-santo, fazer as coisas dentro dos parâmetros certos. Mas, por isso ou aquilo, o orixá, por intermédio do Oluô, me escolheu como líder daqui. A substituição aqui é feita através do jogo de búzios. Como na Casa Branca, que também é através do jogo de búzios. Do Gantois, eu não posso dizer muito, porque sabe-se que é uma substituição familiar. Cada casa tem um uso.
AM - E sobre a casa, o terreiro, como a senhora define? Porque antropólogos, escritores, visitantes falam muitas coisas. É uma casa religiosa? Tem semelhanças com uma escola, uma universidade, uma casa terapêutica, onde as pessoas buscam cura? Como a senhora define o terreiro? É uma família?

MS - A princípio, todo terreiro é uma família, porque é a família espiritual. Nosso chefe, nosso patrono aqui é Xangô. Então, tudo aqui é feito com as bênçãos, as determinações de Xangô. Ele não vem e fala, mas, através dos búzios, de certas práticas, nós podemos contar com ele. Então tudo o que aqui é feito é por orientação espiritual de Xangô. E, como na vida, a comunidade axé é uma escola. Aqui a gente aprende o lado espiritual - e o espiritual apenas por si só é importante -, mas não é a única coisa que existe na sociedade, por isso temos o lado social. Temos o espiritual e o social. Então esse espaço que nós ocupamos é como se fosse uma pequena cidade. Uma cidade que já vem do tempo de Mãe Aninha, quando ela caracterizou aqui como a África, botando uma casa para cada orixá. Enquanto lá, cada orixá tem a sua tribo, a sua cidade, ela deu um espaço para cada um, onde eles têm seus rituais, em dias diferentes, separados, cada um seguindo os seus preceitos. E também a resistência maior da raça negra foi na religião, na crença dos orixás. Se não fosse assim, a mulher da crença nos orixás não teria essa auto-estima. O pessoal de candomblé tem auto-estima, o pessoal de candomblé se gosta, gosta de si próprio e, até por osmose, gosta do irmão, porque os que entram aqui estão todos sobre orientação de Xangô ou de Oxalá. São todos irmãos e a coisa mais normal do mundo é que um irmão goste do outro, com raras exceções, mas é normal na vida.
AM- Fale mais sobre essa resistência através da religião.
MS - Isso vem do tempo de Mãe Aninha, a fundadora, que naquela época de repressão procurou apoio até com o presidente da República e se integrou na Igreja Católica. Naquele tempo, ser da Igreja Católica era ter status, porque quem mandava era o branco e essa era a religião do branco. Daí foram fundadas as irmandades, como a do Rosário dos Homens Pretos, a Irmandade da Barroquinha e outras mais, onde a mulher negra podia fazer os seus cultos. Era proibido adorar os orixás. Quem era espiritualizado precisava encontrar qualquer coisa espiritual para se apegar e foi por isso que surgiu o sincretismo, quando se faziam as coisas meio mascaradas. Se adorava o orixá de uma forma velada, como se estivesse cantando para os santos. E o negócio foi tão seguro que, atualmente, nós já estamos livres, mas temos tido muito trabalho para o povo de orixá se conscientizar da importância do orixá, da força e da energia. O orixá é uma coisa independente de qualquer outra crença, como qualquer outra crença é independente do candomblé. Então, o bom e o bonito é que cada um se fixe na sua crença, nos seus símbolos, na sua energia e não precise se segurar no outro para mostrar potencialidade.

AM- A senhora tinha falado que, além da parte espiritual, existe a parte social do terreiro.
MS - Pois é. Aqui, além de cuidar da parte do orixá - que são as festas que você conhece, independente dos rituais internos que só cabem a nós -, a gente tem a parte social. Fundamos uma escola, num convênio com a prefeitura, que tem 300 crianças. As professoras fazem um serviço muito bom e que a prefeitura reconheceu, tanto que ela já passou a ser escola referência. É uma escola da rede pública e atendemos à lei que diz que a liberdade de culto deve existir. Ali não se ensina candomblé nem iniciações, mas muita coisa relacionada com a cultura africana iorubá. Nós não somos africanos, somos brasileiros, afro-brasileiros. É fanatismo dizer que somos africanos. Somos afro-brasileiros, descendentes de africanos. Então, alguma coisa da cultura africana é passada no colégio, mas nós não aceitamos apenas alunos e pessoas ligadas aos orixás. É um espaço aberto. Temos professores e alunos de outras religiões. Eles não estão aprendendo religião, porque religião não se impõe. Escola para religião é bobagem. O professor e o diretor do colégio têm que enfatizar a cultura deles, mas não se força religião. Fizeram isso com os negros, com os índios, mas isso é contra a humanidade.

AM - E vocês têm também o museu, a biblioteca, oficinas…
MS - É, estou falando da escola só para você entender como funciona. A diretora Marivalva está ali há 20 e alguns anos, desde quando funcionava nesse mesmo lugar uma creche, num convênio com outro órgão. Como este órgão foi responsável pela construção, compramos o prédio, mesmo sendo aqui dentro do terreiro, para poder ser nosso. Como a escola foi uma experiência boa - está sendo boa e será melhor, com fé em Deus - resolvemos fazer o museu, em 1983. Vera Felicidade foi a pessoa responsável, uma filha-de-santo nossa. Eu estava recentemente aqui no axé e fiz uma viagem à África, onde vi aquelas coisas todas. Aqui também eu via tantas coisas bonitas jogadas aí pelos cantos. Até que, conversando com Vera, ela tomou para a si a responsabilidade e criou o Museu Ohun Lailai. Temos uma biblioteca também, onde a responsável é Luzia Leal, uma bibliotecária aposentada. Todos aqui são voluntários. Luzia instalou a biblioteca, deu nome e está tomando conta. Nós recebemos doações: eu tinha a minha biblioteca particular, que doei toda, e muitas pessoas também têm doado muitos livros e ainda queremos mais. Temos também um grupo de estudos. Os responsáveis são Cléo Martins e Roberval Marinho. Principalmente esses dois estão à frente, que são os nossos filhos-de-santo pensadores. Ana Rúbia é nossa auxiliar, porque ela faz tudo aqui. Temos também um projeto com o Comunidade Solidária e o Unicef. A responsável é Tereza, outra filha-de-santo, que está fazendo várias oficinas para dar ocupação a essas crianças. Estamos todos preocupados com isso. Também fazemos aqui em casa seminários entre nós mesmos, de vez em quando, para bater papo. É daí que surgem coisas como o Festival Alaiandê Xirê, uma criação de Cléo e Roberval. Este foi o terceiro ano do Alaindê e está dando certo, fazendo sucesso, está repercutindo lá fora. Nós juntamos o lúdico com o espiritual e deu certo, tem tido muita aceitação das pessoas.
AM- Diariamente vêm pessoas aqui?
MS - Quase que diariamente. O meu dia de atender era quarta-feira, mas é tanta gente que vem… Fico com pena de ver as pessoas chegarem e voltar chorando. Eu aí atendo e isso até impede a minha vida social. Eu quase não faço mais nada a não ser trabalhar aqui dentro. Virei uma escrava. Mas a compensação é que a gente tem a sensação do dever cumprido, vê que conseguiu ajudar algumas pessoas. A gente não se julga onipotente, mas damos graças ao orixá por conseguir ajudar. Quando nada, o bem-estar. Muita gente vem aqui para nada também, porque gosta do espaço. Vem, senta-se aí, passa a tarde sentado nesse espaço e vai tranqüilo. Não toma um banho, não faz nada, só vem pelo axé. Deve ser o astral que é bom, não é? (Risos). Pronto, iaiá.

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