sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Relatório de viagem

Por Vicente Serejo
 Fui ao jornal, Senhor Redator, apanhar a correspondência da semana. Saí com alguns envelopes e dois livros debaixo do braço. Como faço de vez em quando. Nem notei que levava comigo um navio da infância. Não imaginei que naquela mesma tarde embarcaria para uma longa viagem ao mundo que perdi. Eu que até hoje escrevo da janela daquela casa, minha Escola de Sagres, de onde parti numa manhã distante, levando o adeus do meu pai que ficou para garantir nossa sobrevivência na capital.
É que os livros, mesmo os mais mansos, cheios de saudade e de lembranças, como as ‘Silhuetas do Tempo’, de Jairo Josino de Medeiros, às vezes são muito perigosos para um coração já vivido e hipertenso nos seus sessent’anos. Fui passando suas páginas, as histórias, fixando personagens. Indo e vindo no remanso das recordações de um velho homem do mar que aprendeu com as marés e as ilhas, os ventos e as estrelas desse destino tão mágico de sempre partir, afinal toda viagem é uma aventura.
De repente, na página 89, um pequeno navio de três velas arqueadas pelo vento que saltou do livro e caiu bem dentro do peito, no mar da infância. Chamo de navio, fiel ao imaginário, mas Jairo tem razão: é uma barcaça de três mastros, convés baixo, proa alongada. Uma velha barcaça da Companhia Comércio e Navegação que fazia a pequena cabotagem entre as salinas de Alagamar e os armazéns da Rua da Frente levando o sal para os grandes navios depois de carregadas por salineiros e estivadores.
Ora, Senhor Redator, como ficar parado, só olhando o livro, feito o menino que mirava seus navios da varanda da casa da infância e sonhava com viagens, se hoje há um homem triste a procura do seu mar antigo? Então embarquei como numa viagem de verdade. Como se ouvisse de novo o grito do Mestre Arrais aos seus marinheiros dando ordem de zarpar. O Vento Leste enchendo as velas, a velha barcaça partindo, vagarosamente. Como se fosse um sonho no instante mágico da transcendência.
E o olho do menino foi desenhando o casario da rua antiga – a torre humilde da igreja, o prédio do Tiro de Guerra, a Prefeitura. E o olho riscando, casa a casa, o telhado sujo do tempo como se deles ainda voassem os pássaros das lembranças feridos de saudade. A barcaça indo, lentamente, margeando o Lamarão, espantando as garças brancas nas gamboas cheias de silêncio. Aproando na direção do mar que naquele tempo era grande, sem fim. Mar cheio de perigos, sem cabelos, como minha mãe dizia.
 Como foi triste e doce, Senhor Redator, o reencontro com a velha barcaça, o grande navio da minha infância. Com seus três mastros imponentes, suas velas grandes e cheias de vento, cortando as águas mansas do rio na direção do mar. Estou vendo chegar o jipe amarelo com as três letras – CCN, da Companhia Comércio e Navegação, pintadas nas laterais do capô. É a infância que está ali, bem na página 89 do livro de Jairo Josino de Medeiros. Viajando naquela velha barcaça para nunca mais…


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