domingo, 16 de outubro de 2011

A bunda já não abunda –

Joca Souza Leão
Bunda é palavra sonora, vogal, insinuante, simpática, risonha, franca, redonda, provocante, faceira e feminina. Quando eu era menino, ninguém chamava bunda de bumbum. Essa invenção de mau gosto é coisa recente. A bunda abundava plena. As avós mais puritanas a pronunciavam sem vergonha alguma. No diminutivo, quando se referindo às dos netos: injeção na bundinha, caiu de bundinha no chão. E bunda-canástica era brincadeira que todo menino pequeno brincava.
Nos Jogos Intercolegiais, tinha uma menina que jogava vôlei pelo Vera Cruz (ou Damas?) que a gente chamava de Raimunda: “feia de cara, boa de bunda.” A bunda vive (ou “se diverte”) por conta própria, como nos disse o poeta. E não depende da cara da dona.
Feliz o povo que tem bunda. Os portugueses mesmo não têm. Nem bunda palavra nem bunda propriamente dita. Talvez por isso sejam tão melancólicos. Não têm dança de requebro. Usam uma única palavra (aquela de uma sílaba, palavra seca, áspera, aguda, dura, essa sim, feia) para se referir à parte e ao todo. Para que se avalie a aberração, seria como se chamássemos de amídala tanto o rosto quanto a própria amídala.
Por falta de bunda na língua lá deles, veja só o que disse Manuel Maria Barbosa Du Bocage: “(Era) a dama mais formosa, / E nunca se viu cu de tanta alvura.” Fosse brasileiro o gajo, saber-se-ia com precisão a que parte da dama se referia o poeta.
Nádega e região glútea, evidentemente, não valem. Seria o mesmo que chamar a bunda de senhora ou majestade. Assim, quando alguém ouvir a expressão “senhora bunda”, saiba que não se trata de saudação cerimoniosa, mas, apenas, do anúncio de uma bela bunda. Uma senhora bunda. Com todo respeito. Ou não.
O poeta Carlos Drummond de Andrade, observador arguto e falso tímido – mineirice de come-quieto – era conhecedor, apreciador e versejador do tema:
“A bunda está sempre sorrindo, nunca é trágica. /(…) A bunda são duas luas gêmeas / em rotundo meneio. Anda por si / na cadência mimosa, no milagre / de ser duas em uma, plenamente. / A bunda se diverte / por conta própria. E ama. / (…) Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz / na carícia de ser e balançar. / (…) A bunda é a bunda, / rebunda.”
As bundas propriamente ditas, rechonchudas e empinadas, nos foram trazidas pelas negras de etnia banta: angolanas, sobretudo angolanas, cabindas, benguelas, congonesas e moçambicanas. A bunda palavra nos veio da língua delas, o kimbundu: mbunda.
Eu me recuso a chamar bunda de bumbum. Bunda é bunda e bumbum não é nada. É ridículo, apenas. E o pior de tudo é que se diz bumbum como se bunda fosse palavrão. Na verdade, coisa feia é chamar uma bela bunda de…, vocês sabem, não vou mais repetir, nem hoje nem nunca, esse outro nome.
A bunda é afrobrasileira. Que abunde, pois. A bunda é nossa!
P.S. – 1. “A bunda” contou com a pesquisa etimológica de Francisco Carvalheira de Mendonça, meu amigo Chico.
2. Vocês viram o que fizeram com as árvores do Hospital da Tamarineira? Das duas uma: doidice ou porre. Ou os caras deram o serviço aos pacientes (terapia ocupacional) ou a turma contratada (a mesma da Academia de Letras) tomou um porre antes da poda. Aliás, as notícias divulgadas falam de quem protestou, mas não dizem três coisinhas básicas: contratante, contratado e quanto custou a farra.

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