terça-feira, 18 de outubro de 2011

Malandro ao Norte

Por Homero Fonseca
Você vai ao Oiapoque ou a Corumbá, passa pelo Nordeste, desce pelo Rio e vai bater no Chuí. E não dá outra: o malandro brasileiro está lá. Muda o sotaque, mas o espírito, a verve, a capacidade de, pela astúcia, se desvencilhar de estruturas aprisionantes, de rotinas engessantes, das exigências formais do sistema, afloram em toda a parte desse rincão imenso.
Em recente viagem ao Amapá, deparo-me com um tipo desses. Minto. Com a memória de um tipo desses: seu Paulino, figura popularíssima de amapaense com jeito de baiano.
Foi por meio do escritor Paulo Tarso Barros, poeta e contista, anfitrião de incansável gentileza, que eu soube das aventuras desse negro pachola e falante, já falecido.
Reproduzo a narrativa de Tarso, com alguns cortes para adequar ao blogue, que não afetam a estrutura, o estilo, nem a essência do conto. Aí vai:
UMAS E OUTRAS DE SEU PAULINO
Por PAULO TARSO BARROS
Figura das mais conhecidas do bairro e de certo modo até na cidade, Seu Paulino era descendente do famoso Mestre de marabaixo Julião Thomaz Ramos, líder dos negros do Laguinho.
Seu Paulino, já de meia idade, era funcionário da Prefeitura no tempo em que se passam estas histórias, contadas e recontadas na cidade e reproduzidas em algumas crônicas. Como não havia muito que fazer, raramente ele aparecia na repartição. Todavia, a cada final de mês tinha que assinar o famigerado ponto e aproveitava a ocasião para rever os amigos, conversar e saber das novidades. Sempre comentava com os barnabés:
- Meu filho, político é como puta esperta: te rouba sorrindo. Nenhum presta. Vocês vão ver quando os homens do colarinho branco lá da Capital Federal transformarem isto aqui em Estado: vai ser a pior desgraça do mundo, pode escrever, pois vai ter político de toda espécie e qualidade, candidato saindo pelo ladrão. Aí é que nós vamos ver roubalheira, patifarias, desavenças, trapalhadas e tudo o que não presta. Tomara que até lá eu já esteja de ossos brancos no cemitério de São José ao lado dos pioneiros.
Com o passar do tempo, Seu Paulino já não se dava mais ao trabalho de ir até ao prédio da velha prefeitura para assinar o ponto. Tinham de procurá-lo na residência do seu primo Pavão, onde uma turma de aposentados e amigos jogava dominó, tomava gengibirra enquanto passava o tempo, usufruindo bons momentos na quietude das tardes mornas e nos finais de semana. Os funcionários mais novos chegavam com a folha e esperavam o término de uma partida para que Seu Paulino assinasse a frequência, sempre resmungando:
- Meu filho, até aqui no meu joguinho vocês vêm me incomodar com esse negócio de assinar o ponto? Será que não se pode mais nem jogar um pouquinho com os amigos? Duvido que no tempo do coronel Janary e do prefeito major Eliezer Levy se procedia dessa maneira desrespeitosa e humilhante com os funcionários. Eu já tenho mais de trinta anos de serviços prestados e o meu nome já deve ser conhecido até pelo Presidente da República, quanto mais de um prefeitinho pé rapado aqui da nossa terra, acostumado a tomar açaí e comer camarão salgado lá no Mercado. Mais dia menos dia ele sai, ora se sai. Aí eu vou rir na cara dele, desse besta quadrada que só sabe fazer um “ó” porque senta numa cadeira.
Mas certo prefeito, ao tomar posse e querendo moralizar o avacalhado e ineficiente serviço público municipal, fez publicar um rigoroso edital convocando todos os barnabés para que se apresentassem no acanhado e decadente prédio da prefeitura. E o mais importante: que trabalhassem, fizessem alguma coisa, justificassem o salário pago com dinheiro público. Foi um Deus nos acuda em Macapá, pois o edital ameaçava de demissão e severas punições quem não comparecesse. Na segunda-feira fatal uma multidão de revoltados e humilhados funcionários tentava se acomodar nas exíguas instalações; e cada qual buscava uma mesa, uma máquina de datilografia, aproximava-se de um arquivo, de uma prateleira ou andava com carimbos e pastas nas mãos.
Uma outra atitude ditatorial do prefeito: todos tinham de assinar o ponto no próprio local de trabalho. Os funcionários encarregados da papelada, porém, foram lhe dizer que Seu Paulino era um caso à parte, funcionário antigo, famoso por ser parente do Mestre Julião, já quase com direito a aposentadoria. Não convenceram e o prefeito mandou dizer que ele teria que vir assinar o ponto. Quando recebeu o recado do chefe autoritário e exigente, Seu Paulino, que estava no costumeiro jogo de dominó no pátio da residência do primo Pavão, tirou o cachimbo da boca e comentou:
- Meu filho, eu sabia que isso ia acontecer. Era só mudar o prefeito que ia logo começar essa perseguição política em cima da gente! Nesta terra ninguém tem sossego, não se pode nem mais viver em paz, jogar um dominó ou tomar um tacacá que ficam logo inventando moda e serviço. Por isso é que esse país nunca vai pra frente – e aqui nesta terra muito menos, onde tudo parece crescer pra baixo feito rabo de cavalo. A gente quer viver em paz, com tranquilidade, junto da família e dos amigos, quando aparece um espírito de porco com ideia de jumento! Não se respeita mais nem os cabelos brancos de um cidadão, um pai de família que tanto já trabalhou nesta cidade desde a época do padre Júlio Maria de Lombaerde. Eu era menino barrigudo e pimbudo mas me lembro. Sou do tempo em que esta cidade era pequena, só tinha mato, lama, poeira e malária. Não se tinha salário nem nada. Cinema só se conheceu por aqui por causa do padre belga, que trouxe uma máquina velha e ainda tinha que traduzir a língua enrolada dos artistas estrangeiros, senão o povo não ia entender coisa nenhuma. Quase ninguém sabia ler o português, quanto mais língua dessa gente lá de onde o diabo perdeu os cornos e as botas!
Ao ver as mocinhas jovens, de roupas coladas ou de shorts, o velho, afoito e assanhado, ficava murmurando e tirando graça, dizendo: - Ai, Jesus! Ai, Jesus! Ai, meu Deus, se eu pego uma menina dessas eu faço um estrago medonho, eu viro bicho, eu fico novinho em folha. Os amigos lhe alertavam: - Seu Paulino, o senhor não dá conta de uma moleca nova, ao que ele retrucava: - Depende; se ela não vier com pressa, eu traço mesmo, não dou moleza. E explicava: - Olha, gente, eu comi muita carne de porco, muito tutano e carne de jacaré. Não brinquem comigo, não, que eu sou meio nojento!
O empresário Salomão Alcolumbre, dono de postos de combustível, desejando ampliar sua rede de estabelecimentos, soube por amigos que Seu Paulino dispunha de um ótimo terreno, bem localizado em área ideal para a construção de mais um ponto de vendas. Mesmo abandonado, o matagal pujante, pois o proprietário não tinha interesse em construir absolutamente nada no local, Seu Paulino se fez de desinteressado pela venda, já prevendo uma substancial valorização. Dezenas de vezes o empresário Alcolumbre o procurou, mas ele se mostrava indiferente, assim como quem não quer nada. Até que um dia, já cansado de tantas investidas para consumar o negócio, Alcolumbre lhe disse:
- Seu Paulino, bote preço no seu terreno. Mas por favor, vamos logo decidir esse negócio hoje, pois eu preciso abrir mais um posto de combustível.
O velho, impassível, ficou pensativo por alguns minutos, acendeu seu cachimbo, deu algumas enigmáticas baforadas e fez uma proposta, deixando o empresário irritado. Este imediatamente lhe retrucou:
- Seu Paulino, mas esse terreno é muito pequeno e não vale tudo isso que o senhor está me cobrando. Talvez a metade desse valor. Se quiser fechar negócio, pago logo cinquenta por cento em dinheiro e depois o senhor me passa a escritura.
- Salomão, meu filho, você é um sujeito inteligente. Eu te vi menino e hoje você é um homem rico, orgulho da sua mãe, dona Alegria, uma senhora distinta e que soube criar vocês, ensinar os macetes comerciais. E que mulher competente: todo mundo na família é bem de vida. Por isso mesmo preste bem atenção: tu só estás calculando o preço aqui desse pedaço de terra e mato... E o resto do terreno, será que não conta, rapaz?
- Mas que resto de terreno, Seu Paulino?
- Que resto? Tu já olhaste pra cima? Tem o céu, tem as nuvens, tem as estrelas, a atmosfera, pássaros e tudo o mais. Não existe trena ou fita métrica que meça esse terreno aí para o rumo de cima - nem foguete de americano ou de russo pode chegar ao fim. E se você fizer um buraco aqui no meio vai sair do outro lado do mundo, lá pelo Japão, e é bem capaz de achar ouro, prata e até mesmo petróleo, pois dizem que aqui no Amapá tem muito petróleo para ser descoberto... Quem sabe não esteja por aqui esperando por você, que já vende gasolina e é bem entendido no assunto? Se junta aí com os árabes e vai ficar mais rico ainda...
Contam por aí - principalmente os moradores do Laguinho - que, ao morrer, já bem velhinho, os familiares foram preparar o corpo. Como não era de seu estilo e modos tomar banho regularmente – porque, segundo sua opinião, pau com casca dura mais – muitos juram que seu corpo se remexeu quando alguém jogou um pouco de água sobre ele.
Seu Paulino, Seu Paulino...

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