quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Depoimento cigano na Roda de Convivência sobre Espiritualidade e Diversidade Religiosa

Por Nicolas Ramanush, autor do livro Palavras Ciganas - Vocabulário e Gramática Sintética do Romani - Sinte. Tratado linguístico e antropológico sobre o Romani.

“Podemos falar de uma espiritualidade católica, espírita, judaica e muitas outras. Essa palavra em si define apenas a medida do homem e sua necessidade atávica em transcender a si próprio. Portanto, agora vou falar um pouco da espiritualidade cigana do clã Sinte (lembrando sempre que a generalização é um grande erro - e ninguém pode falar em nome do cigano, mas sim do seu próprio clã. Existem muitos clãs e cada qual com sua especificidade cultural e moral). Nossa espiritualidade, ou seja, a busca em transcender a si próprio rumo à uma força maior e criadora é facilmente detectada em nossos rituais. Sim, em nosso clã os valores éticos estão fortemente ligados aos valores espirituais. Cada indivíduo tem o direito de seguir a religião com a qual se identificar. E utilizo aqui uma alegoria para demonstrar como isso funciona: havia um phuro rrom (um cigano idoso, que dentro da nossa forma social tem grande valor e nunca é deixado em asilos ou abandonado pela família) que estava com um jovem cigano, seu discípulo, em um acampamento. De repente pela manhã chega um outro jovem e diz: “Phuro, posso fazer uma pergunta?” E o idoso respondeu: “Sim, mas pergunte olhando em meus olhos”. “Deus existe?”, perguntou o jovem cigano. O phuro olhou em seus olhos e respondeu: “Não. Deus não existe!” O rapaz agradeceu e saiu. À tarde um outro jovem cigano se aproxima e faz a mesma pergunta. Para a qual o phuro responde: “Sim. Deus existe!”. Nesse momento o discípulo que o acompanhava desde a manhã pensou em silêncio: “para um o phuro disse que não e para outro que sim….!!??” Então, no início da noite o terceiro jovem fez a mesma pergunta, para a qual o phuro teve o mesmo procedimento e respondeu: “Você sabe que eu tenho minhas dúvidas”. E assim o discípulo que ouvira o sábio phuro dar três respostas diferentes para a mesma pergunta, ficou muito intrigado e disse: “Phuro, por que para um respondestes que sim, para o outro que não e ainda para um terceiro que tinha dúvidas, se a pergunta dos três foi a mesma?” E aí o phuro, sorrindo, respondeu: “cada qual encontrará Deus a sua maneira, alguns pela negação, outros pela certeza e outros pela dúvida. E as respostas eu retirava de dentro dos olhos de cada um”.

 Nicolas Ramanush, Campinas (SP), autor do livro Palavras Ciganas – Vocabulário e Gramática Sintética do Romani – Sinte. Tratado linguístico e antropológico sobre o Romani*.

 * O Romani é a expressão mais evidente de nossa identidade cultural. E um fato histórico corrobora para esta afirmação: em 1710 foi criada uma lei no Brasil proibindo que nós ciganos ensinássemos o Romani para nossos filhos. Isso decorria do fato de que a coroa portuguesa percebera que nós éramos um grupo unido com uma só língua, com usos e costumes próprios e por esse motivo podíamos nos tornar uma força contra a administração colonial. O Romani representa nossa verdadeira pátria (ou melhor dizendo: mátria), pois é, em si, um idioma não-territorial.

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