domingo, 25 de setembro de 2011

Uma ópera na roçaa, de Márcio Sampaio

As férias na fazenda de meu padrinho completavam, ano a ano, o circulo mágico que formava os meus dias de menino. À tardinha, brincando no gramado limpo em frente à casa grande, sentia fundo aquela calma sem culpa. À medida que começava a anoitecer, entre risadas do jogo da bola ou outra brincadeira, ouvíamos, em concerto, o coro das aves se recolhendo aos poleiros; galos, galinhas e seus pintos, os patos, perus e mais as galinhas d’angola, sempre barulhentas e retardatárias, entravam na cantoria com suas vozes escandalosas. Os cachorros alegres acompanhavam a entrada do gado no curral, ajuntando suas vozes ao aboio dos vaqueiros. Bezerros e vacas berravam cheios de mansidão, e os pássaros em seus ninhos faziam o acompanhamento. Como um contraponto, o violoncelo da água do riacho tocando o moinho na sua incansável tarefa de triturar o milho e fazer fubá.
Meu padrinho Quintiliano, da varanda, regia em brados, às vezes impacientes, o movimento dos agregados na recolha do gado ao curral. “Ô Pifânio, a Vitória tá subindo, cerca lá, Remundo... Ô Zé, tá dormindo em pé? Olha a bezerro malhado! Quê que está acontecendo?” Seus gestos de maestro e o olhar agudo eram percebidos à distância, e os executantes, no movimento presto, iam pressurosos atendendo àquela extraordinária regência. Este leque de sons e movimentos, cheios de vitalidade e uma forte pulsação, constituía o prelúdio.
Era então a hora em que a tia Marieta ligava a vitrola, junto à varanda e colocava em bloco a pilha de dez discos escolhidos para aquela noite. O programa se iniciava com a Ave Maria, de Bach/Gounod, cantada por Caruso. Depois vinham Tito Scchipa, Jussi Björling, Beniamino Gigli, a extraordinária Erna Zack com seus magníficos trinados - as áreas-solo, os duetos e os corais das óperas italianas e francesas; havia também Mozart e Wagner. E esta música se misturava ao coral dos animais, bem mais cedo iniciado, ao qual, noite adentro, iriam incorporar-se também os cantos impacientes dos sapos e alguns pássaros noturnos.

Encerrada essa música divina, vinha um breve momento para a oração comunitária - toda a família, mais os empregados rezavam o terço e a ladainha diante do altar de Nossa Senhora do Rosário; os meninos, impacientes, fazendo as brincadeiras às costas do Padrinho. Tia Marieta, fingia-se de brava, mas com a mão na boca, tremia com o riso sufocado. E vinha então outra sessão de delícias - o café da noite, lautamente servido.

Tínhamos enfim um momento de congraçamento geral junto com os empregados, na cozinha, outro espaço mágico de histórias e brincadeiras. O sono longo, cheio de sonhos, ora alegres ora aterrorizantes, vinha com um fundo de música. E aqueles personagens de ópera me visitavam com freqüência, solicitando-me que os redimisse de seus destinos cruéis. Eu os salvava todos, inventando melhores finais para suas tristes vidas. Nada de morte por punhais ou tísica, nada de fogueiras, chifradas de touros, estrangulamentos por ciúmes, haraquiris.
Quero a alegria, a felicidade geral, os risos e as brincadeiras. Que a pungência sentida por aquelas ainda incompreendidas expressões da grande arte, seja subjugada pela música alegre do galo anunciando o amanhecer.

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