domingo, 25 de setembro de 2011

O mito das três raças repaginado

O mito das três raças repaginado*

Por Ilka Boaventura Leite
Professora do Departamento de Antropologia da UFSC e coordenadora do NUER

Quando o assunto é a identidade cultural brasileira, volta e meia nos deparamos com aqueles que se rendem aos "argumentos persuasivos" que defendem a mistura como o principal elemento identitário e, portanto, "constituinte" da nacionalidade brasileira . Estes "argumentos persuasivos", como chegam a enfatizar, justificaria por si só, a preferência, considerada "mais simpática", por esta visão de um Brasil miscigenado, mestiço, pressupondo, certamente que isto seria a garantia de uma visão mais democrática da referida sociedade em questão.
A meu ver, isto caracteriza uma postura interpretativa, teórica e política, não propriamente explícita (mas considerada altamente "otimista") do mito das três raças, tal como foi brilhantemente analisado por Roberto Da Matta. Em outros termos, o mito das três raças, há muito incorporado como ciência nas cartilhas escolares, reaparece agora repaginado, narrando novamente o sucesso absoluto da triunfante missão colonial embranquecedora. Este argumento, no quadro político do Brasil atual, soa para os negros brasileiros como mais um terrível ardil.

Afinal, pensar o Brasil pluricultural, proposta levada pelos movimentos sociais à Assembléia Nacional Constituinte de 1988 deveria pressupor um reconhecimento mínimo de que as desigualdades sociais observadas encontram-se também projetadas no plano cultural e, que superar essas desigualdades, implica na necessária incorporação, no plano jurídico, das experiências históricas dos grupos que participaram da construção do país. Significa não negar a cultura a esses grupos, mas sobretudo vê-los, no mínimo, enquanto espectro de uma negação, e, portanto capazes agora de se afirmarem pelo viés da experiência qualificada, marcada, neste caso, pelo racismo. Mas, tudo indica que essas especificidades, tidas como irrelevantes, incômodas, ou, melhor, perigosas e supostamente capazes de produzir ainda mais conflitos, devem ser, para o "nosso bem", abafadas. Esta postura, um tanto fóbica, parece ser de uma ingenuidade atroz, mas não é. Tratar diversidades como misturas, pode muito bem ser visto como um certo agenciamento da cidadania - poderia concluir, sem dúvida, José Maurício Arruti.

O Brasil, um dos países de maior desigualdade social atualmente no mundo, nunca poderá se ver como democracia se não respeitar as diferenças culturais, se não conseguir vê-las, sem precisar apagá-las através da idéia da mistura. Conforme nos lembra Ruben George Oliven, uma nação não se torna democrática se não consegue reconhecer os valores e as expressões estéticas de seus grupos formadores, se não traduzir isto em direitos sociais. Quando a lei maior, a Carta Constitucional chega a ter que mencioná-los, chega a explicitar o fato de grupos humanos inteiros terem sido durante séculos de formação da nação, alijados dos direitos sociais e culturais básicos, como é o caso de africanos e seus descendentes e de algumas nações indígenas que restaram hoje "aldeadas", é inútil querer ignorar as proposições resultantes deste debate que está apenas começando. De fato, ainda há muito a ser feito, para que nossa sociedade se torne democrática.

No momento em que a discussão sobre o racismo está sendo provocada desde a base das instituições, em que há inúmeros dispositivos jurídicos propugnados por instâncias e organismos internacionais preocupados com os direitos humanos como a UNESCO, a ONU, a Organização Internacional do Trabalho, a Conferência de Durban, que incidem sobre questões cruciais a serem postas em prática para se atingir um estado mínimo de dignidade humana; no momento em que tais instituições reconhecem a necessidade de proteção do patrimônio cultural afro-brasileiro, do apoio aos estudantes negros que buscam uma chance para se profissionalizar, em que a regularização fundiária das terras ocupadas pelas famílias afrodescendentes estão sendo vinculadas com o combate ao êxodo e à fome, que apontam formas de abolir certas discriminações no mercado de trabalho; no momento em que se discute amplamente no país e se busca soluções que contemplem essas populações historicamente alijadas; exatamente neste momento, ressurge o mesmo discurso que ecoou nos anos trinta, trazendo consolo e acomodação às elites dominantes. Quase um século depois, esse discurso retorna falando em mestiçagem, em mistura, e estas vozes, surpreendentemente, são as mesmas que são contra as chamadas ações afirmativas e cotas. Vozes que se apegam aos argumentos persuasivos da miscigenação, da mistura, não mais de raças....Isto nos parece uma sinistra coincidência.

Levamos cinqüenta anos para demonstrar que Gilberto Freyre foi um dos mais ilustres representantes do pensamento conservador, elitista e folclorista deste país e há vozes que ainda insistem em entroná-lo como o nosso pai intelectual, ou seja, ainda insistem em que nos reconheçamos a partir do mito das três raças, supostamente "formador" da identidade nacional brasileira, da suposta nacionalidade. Pois bem, como vem percebendo Kabengele Munanga, uma das vantagens de se acreditar no mito das três raças, é o de não precisar enxergar que os pobres, os não-letrados, os indigentes, a população carcerária do Brasil, correspondem, em sua maioria, aos descendentes dos africanos que chegaram no Brasil como escravos. São esses os filhos dos que durante mais de trezentos anos foram escravizados, torturados e mortos. É só olhar em volta, nem há necessidade de pesquisas, ou estatísticas. É só olhar em volta, para constatar isto, mas as pesquisas confirmam: em todo o país, há cerca 20% de alunos negros e 80% de brancos sentados nos bancos das universidades. Tendo feito palestras em lugares os mais eqüidistantes do país, procurei, no momento de começar a falar, localizar os negros na platéia. Quase não os vi. Uma vez falei para uma platéia de mais de 500 estudantes em uma universidade do oeste catarinense e não havia um único negro lá, sequer um para alterar a minha narrativa. Também circulei por inúmeros espaços dentro do campus e também quase não os vi entre os funcionários. Retornando à UFSC, também percebi que ocorre o mesmo, e no quadro de professores, isto apareceu de modo mais acentuado: somente cerca de 1% são negros. As estatísticas, embora rarefeitas e até problemáticas, existem, e foram amplamente divulgadas pela mídia, evidenciando ainda mais que os fatos "falam por si", mas é claro, somente para quem quer considerá-los.

No quadro de ausência quase completa de professores negros nas universidades, apenas uns poucos funcionários, principalmente cuidando da limpeza. Este último ponto é verdadeiramente emblemático. Estou falando, é claro, da região sul do Brasil, mas posso também falar de minhas vivências em outras regiões. Lembro-me que em meados dos anos 80, na faculdade de filosofia e ciências humanas da USP, bem no canto do corredor, havia um balcão elegante, de madeira e mármore, onde se servia cafezinho, sempre gratuito, aos professores e seus convidados, geralmente alunos de pós-graduação. Sempre passava por lá após as sessões de orientação. Este cafezinho era servido por uma família inteira de negros que se revezavam, em pé, nos três turnos do dia, fazendo e servindo o precioso líquido para os professores e seus convidados. Alguns freqüentadores mais assíduos contavam que esta família de negros estava ali há décadas, servindo o cafezinho aos professores. Muitas vezes eles eram percebidos enquanto negros e se tornavam, inclusive, assunto principal das conversas, até discussões, por vezes acaloradas. Muitos dos argumentos, altamente persuasivos sobre eles, eram depois inclusive incorporados em teses e textos científicos. Isto me chamava muita atenção e agora retorna, quando me deparo com esta visão, por vezes mais cínica do que bem humorada, de que um sistema democrático pode existir independentemente do respeito às diferenças, ou que estas diferenças não devam ser realçadas, pelo risco de que elas possam "recrudescer o racismo".

Não podemos esquecer que o ideário democrático das elites brasileiras foi construído no período escravocrata e em diálogo íntimo com as teorias racialistas, nos lembra Lilia Schwarcz. Neste sentido é que enquanto os intelectuais da USP, (universidade da qual fiz parte como aluna, e que trago aqui apenas como um caso exemplar) bebiam seu cafezinho à moda do Império, eram servidos pelos negros pobres e iletrados, discutiam, ardentemente a redemocratização do país. Tal como na vigência do Império, ser a elite (e, ao mesmo tempo, ser branco ou branca) ainda representa ter acesso, ser atendido por um grupo de serviçais, de preferência por uma extensa parentela familiar (geralmente considerados como negros, não importa a tonalidade da pele). Ser elite é dedicar a eles certa complacência, combinada com altivez, uma espécie até de apadrinhamento cordial, sem contudo deixar de impor ou fazer valer a regra vigente de cada um no seu lugar (relembrando aqui mais uma vez Da Matta). Este cenário de relações patriarcais instituiu paulatinamente a idéia de negro como sinônimo de serviçal, e também, desses como seres com poucas capacidades intelectuais. Cada um no seu lugar vem sendo o brado máximo da nacionalidade brasileira. O episódio do porteiro que pede aos negros para seguirem pelo elevador de serviço é um conhecido exemplo e foi discutido exaustivamente pelo filho de uma lavadeira chamado Florestan Fernandes, que também tomou daquele cafezinho, mas nem por isso acomodou-se, demonstrando que vozes como a sua, embora minoritárias nos diversos ambientes acadêmicos, se diferenciavam radicalmente da maioria. Naquele balcão da USP, bem como em outras universidades em todo o país, a elite intelectual, em sua maioria proveniente de famílias escravocratas com um forte orgulho de seu passado, e seus agregados, recém-chegados, continuou tranquilamente sendo servida pelos descendentes dos escravos, sem qualquer problema de consciência, sem o medo que aparenta hoje quando a questão ganha relevância nas políticas sociais. Esta elite, presente também em outras universidades do país inteiro, ainda defende, com unhas e dentes os valores democráticos, sem se dar conta de que ele não existe sem o reconhecimento jurídico do direito à diferença, que eles não se implantarão sem que se possa conferir aos sujeitos históricos de carne e osso, os tributos extraídos da secular negação de suas diferenças, de suas especificidades culturais. Sim, especificidade não quer dizer cultura espetaculosa para estrangeiro ver, mas a valorização de trajetórias, a própria fala que sempre foi sufocada ou ignorada. Estas elites que se postam mais uma vez no lugar de intelectuais e pesquisadores da realidade social brasileira querem, curiosamente, dar um basta, um chega de falar no assunto, àqueles que de fato, nunca puderam falar. Chegam ao absurdo de defender, na atualidade, que os jovens negros devem ficar na escola básica: -"vamos investir na escola básica", é o argumento mais usado, como se os negros tivessem que ficar eternamente no ensino fundamental, no "primário".

As universidades públicas brasileiras ainda são verdadeiros redutos dessa gente, de indivíduos provenientes e que ainda postulam uma cultura e tradição escravocrata. É interessante observar como o cenário atual se constituiu. Na ausência de quadros representativos da sociedade nacional, as universidades acolheram preferencialmente os filhos dos imigrantes europeus, tornando-os subproduto e desdobramento das antigas práticas coloniais, de buscar, lá fora, no estrangeiro, a inspiração e as alianças, capazes de reavivar, até os dias atuais, as velhas estratégias e projetos de embranquecimento, agora disfarçados em amplas posturas meritocráticas. E é neste contexto, que defendem: não há negros porque eles não passaram no vestibular! Quanta hipocrisia! Nossa subserviência e supervalorização do que vem de fora, advém, provavelmente, dentre tantos aspectos, deste tipo de racismo que aqui se desenvolveu e, que, constato, cresce a todo vapor, mais uma vez referendada pela postura de um viajante distanciado, que busca legitimar-se de um lugar de poder incontestável: -"viajei pelo mundo e posso dizer o que vocês são", é a afirmação "empírica" do pesquisador que se considera muito bem fundamentado.

Precedendo a um dos regimes mais desumanos que toda a humanidade já se defrontou, passados quase quatro séculos, veja bem, quatrocentos anos de escravização, tortura, morte e exploração de africanos, envolvendo mais de quatro milhões de indivíduos do continente africano, há ainda quem busque resgatar, revigorar, a idéia de país misturado, pacificado pela miscigenação. Revestido pelo medo, o mesmo medo que assolou os senhores de escravos nas casas-grandes, que sempre existiu no país, o conflito, é agora a razão maior, o pânico maior, que se revela na causa contra as ações afirmativas, contra as cotas. A cruzada é explicitamente pelo silêncio. Uma forma, a meu ver, inútil, de dissipar as lutas travadas pelos negros para contar a sua história, para falar de sua negação. O que temos ouvido, ao contrário e "ad nauseam" são discursos sobre a democracia racial, sobre o povo "pacífico e ordeiro", imagem divulgada no mundo inteiro por Gilberto Freyre - e para inglês ver!

Relembrando um pouco certos fatos incontestáveis do passado:
Enquanto o Brasil reacomodava seus negros recém-libertos no fundo do quintal, no fundo da casa, no fundo da cozinha, no fundo da igreja, no fundo do fundo, diria nosso corajoso Roger Bastide, os Estados Unidos, com seu horrendo regime segregacionista já tinha implantado um sistema universitário que formava padres, médicos, enfermeiras, professoras - quadros humanos para instituições voltadas exclusivamente para os africanos e seus descendentes. O contra-senso imposto pelo racismo ali implantado é que estes quadros profissionais, frutos de uma política baseada no reconhecimento extremo da diferença (não esqueçamos, segregacionista e baseada em idéias de inferioridade) não impediu, por outro lado, a emergência de situações exemplares, capazes de alavancar um processo político reivindicativo, como foi registrado através de Martin Luther King e seus sucessores, até os dias atuais. Assim que houve o aparecimento das ações afirmativas e as cotas nos Estados Unidos, que representaram apenas uma parte ínfima do processo político, houve uma inversão acelerada dos índices que eram até então desfavoráveis aos negros . Todos os analistas até agora concordam que estas posturas, extensivas inclusive ao mercado de trabalho, alteraram profundamente a cultura política do país. Por incrível que possa parecer, foi a visibilidade daquele tipo de racismo, evidenciado na discussão das cotas o que permitiu a instauração, em curto prazo, de um senso de justiça que deslanchou um processo político com dividendos altamente positivos e considerados irreversíveis para a comunidade negra norte-americana. Os exemplos que inspiram auto-estima a um povo são, ao mesmo tempo, as bases sólidas em que se assenta a idéia de nacionalidade, foi a pertinente conclusão de Anthony Smith. O exemplo dos Estados Unidos pode não ser dos melhores, mas certamente é o grande inspirador das lutas atuais dos negros brasileiros. O que assistimos, agora, no Brasil, essa reação contra as cotas, e ao mesmo tempo, um redirecionamento para o foco da mistura, parece muito mais uma reação às prováveis mudanças. É possível ver que este racismo, suavizado pela ênfase na mistura, é ao mesmo tempo, o que vai servindo de combustível infalível para o crescimento da invisibilidade, a face da moeda que conforta, aliena e acomoda: "não dá pra saber quem são os negros, portanto fica difícil implantar tais políticas", dizem alguns. A elite (vendo-se principalmente como branca), não reconhece a necessidade de ceder um milímetro no que considera mérito seu. Quando se trata de falar das cotas, fazem tudo para desconstituir a iniciativa, afirmando inclusive que isto é coisa dos americanos.

Pergunto: E a meritocracia, por acaso também não é? Esta sim, foi implantada e absorvida com uma rapidez surpreendente entre a maioria dos professores das universidades públicas brasileiras. Esta sim, tem sido uma peça de importação rápida e sem qualquer questionamento, que pouco a pouco vai transformando os corredores das universidades brasileiras em verdadeiras pistas de corrida, instaurando um reconhecível clima de "salve-se quem puder". E constato essa corrida vem ganhando cada dia mais força e adeptos. Em recente episódio na UFSC, que se tornou de domínio público e agora institucional, uma pseudo-elite convencida do indiscutível fundamento meritocrático (também "altamente persuasivo"), decidiu cassar o direito de outros professores, colegas seus, ao ensino na pós-graduação, professores com farto currículo e longa experiência de ensino, (um deles com formação em nível de pós-doutorado), professores inclusive adorados pelos seus alunos, simplesmente por não terem obtido (o que parece nem ser verdade) o índice estipulado no ranking, na famosa pista de corrida instituída pela CAPES. Sinceramente, me sinto envergonhada de fazer parte de uma comunidade científica que promove cassações de colegas em nome de se colocar em algum degrau acima, que se vê inclusive, com o legítimo direito de se auto-ranquear...

Lembro-me, neste momento tão delicado de nossa experiência democrática, de uma frase, dita por Raul Antelo, no auge da recente crise na Argentina: - "esta crise não é econômica, é cultural". De fato, tendo a concordar com ele, a coisa é mais ampla, abrange a atual crise política brasileira, que enxovalha as manchetes dos jornais. Não é somente uma crise política, é principalmente uma crise de cultura política. E enquanto tal guarda uma relação direta com as atuais políticas culturais .

Vislumbro tudo isto agora, com bastante nitidez, principalmente quando sou novamente obrigada a me encontrar com o fantasma de Gilberto Freyre rondando as "pistas" universitárias. Só posso mesmo concluir que precisamos, urgentemente resgatar aquele velho e instrutivo ditado africano que diz: "quem não sabe para onde vai, deve buscar se lembrar de onde veio".

Florianópolis, 20 de junho de 2005

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