domingo, 25 de setembro de 2011

Negros do Riacho - escravos da miséria, por Epitácio Andrade

À margem da rodovia BR-226, a 06 km de Currais Novos, no Seridó Oriental do Rio Grande do Norte, um grande artefato de cerâmica, em forma de panela, sinaliza a entrada da mais pobre comunidade remanescente de quilombos do estado: o Sítio Bom Sucesso, conhecido como “Negros do Riacho”.

Da entrada até a comunidade rural distam ainda 06 km em estrada carroçável, que são percorridos, diariamente, pelos comunitários a pé, em lombo de animais, em carroças, de carona em motos ou veículos, em direção a cidade onde buscam acesso aos benefícios das políticas públicas e praticam a mendicância.

Isolados numa ilha de miséria de 03 hectares, cercados por ricos fazendeiros por todos os lados, os “negros do riacho”, ocuparam o território, fugindo do flagelo da escravidão, provavelmente na segunda metade do século XIX, conforme relata Laurentino Lopes da Silva, 94 anos, único filho vivo do patriarca José Trajano. “Pretinha”, filha de Seu Laurentino, uma das lideranças da comunidade, informa a situação de pobreza em que se encontra seu povo, afirmando que “o programa do leite ainda distribui o produto, mas feira é só aqui e acolá”.

Simpática e agradável, Pretinha recebeu a equipe multiprofissional da Secretaria de Saúde de Currais Novos para falar sobre os principais problemas de saúde dos comunitários. Como o psiquiatra sanitarista Epitácio Andrade, afirmava que as doenças infectoparasitárias e o alcoolismo são mais prevalentes nas situações de pobreza, Pretinha, com sua ingenuidade perspicaz, perguntou-lhe se “era médium”. O médico sorrindo, percebeu que por trás da pergunta estavam sentimentos de vergonha e timidez, que impediam Pretinha de expressar sua verdadeira crença religiosa de matriz africana, desestimulada e “invisível” na negritude do riacho.

A equipe identificou casos de alcoolismo, mas não evidenciou comportamentos violentos. Por outro lado, ficou explícita a ociosidade a que está exposta a comunidade. “Filho”, negão sob efeito de umas “choradeirinhas”, enquanto pedia “trocados”, divertia-se e aos visitantes colocando uma volumosa pedra de granito sobre sua cabeça. De início, a assistente social Candice Guedes ficou com medo que Filho pudesse atirar a pedra contra a equipe, até ouvir a interpretação do psiquiatra: “Filho é um ator em potencial, sua brincadeira é puro teatro”. Candice passou a fotografá-lo com tranqüilidade e filho a posar com desembaraço. Depois pareceu fácil entender que aquelas atitudes infantilizadas, produzidas pela ociosidade dominante na coletividade, poderão ser superadas com oficinas culturais.

O futebol, principal esporte nacional, que imortalizou o negro Edson Arantes do Nascimento, “Pelé”, como um dos maiores atletas mundiais de todos os tempos, não atenua o problema do alcoolismo na comunidade, nem se constitui em alternativa para melhorar a qualidade de vida dos comunitários, nem é uma opção de lazer, nem uma possibilidade de renda para os “negros do riacho”. Simplesmente é mais um estímulo ao alcoolismo, porque não é planejado como uma atividade educacional, nem encarado como prática desportiva pelo poder público. O descaso com o esporte está evidenciado no campo de “pelada” da comunidade: a estrada de acesso passa pelo meio do “estádio”.

A organização social dos Negros do Riacho é extremamente frágil. A sede do Centro Comunitário foi construída em 1994, com ajuda de religiosos alemães, e restaurada pela Prefeitura de Currais Novos em 2005. Permanece fechada a maior parte do tempo, e, praticamente, não ocorrem reuniões. No ano seguinte à restauração, a Fundação Palmares reconheceu a comunidade como remanescente de quilombos.
A s condições de vida da população quilombola são, por demais, precárias. Para “Pretinha”, depois da morte de Dona Tereza, há cerca de quatro anos, acabou a produção de cerâmica. Dona Tereza foi uma líder comunitária e espiritual dos Negros do Riacho, e mantinha em funcionamento um centro de artesanato, que gerava alguma renda para as mulheres, principalmente. Nos dias de hoje, em agosto de 2011, o centro de produção artesanal está desativado.

O centro de artesanato foi entregue a comunidade sem reboco e sem piso de cimento. Durante a visita da equipe, foi possível constatar que os jovens comunitários permaneceram jogando baralho no alpendre do centro até a saída dos profissionais. A ociosidade é preenchida por práticas não-produtivas. Não foram identificadas práticas reflexivas, porém foram relatadas experiências sobre a formação de grupos de capoeira.
A ausência de atividades produtivas é determinante para a ociosidade. A agricultura de subsistência, praticamente, não existe, assim como inexiste horta comunitária. A educação para jovens e adultos está desativada. Resta para essa clientela o lazer do carteado.
Na comunidade não tem escola, nem creche. As crianças estudam numa escola de uma comunidade rural vizinha, porém passam a maior parte do tempo em casa, sob os cuidados das mães.

A matrícula das crianças na escola parece ser uma das estratégias de sobrevivência das famílias, cuja intenção é auferir os benefícios das políticas compensatórias, tipo bolsa-escola. Não foram encontrados estudantes universitários na comunidade, que pudessem se beneficiar da política de quotas.
As condições sóciossanitárias da comunidade são extremamente deficitárias. Das 48 famílias que vivem no pequeno território quilombola, a maioria não dispõe de fogão a gás, nem de geladeira. Grande parte utiliza o fogão a lenha para cozinhar seus alimentos. A lenha é colhida nas proximidades das residências agravando a tendência desertificadora da região, com um atenuante, que é a extração da madeira da algaroba, árvore de adaptabilidade favorável no semi-árido nordestiNO.
Não são desenvolvidas ações de educação ambiental, voltadas para a preservação do meio ambiente e/ou para a utilização racional dos poucos recursos naturais. Não há coleta de lixo, nem tão pouco, coleta seletiva. O lixo se acumula no entorno das residências, onde as crianças “brincam”, ou melhor, conseguem se divertir, na companhia dos animais domésticos.

A maior parte das casas tem aparelho de televisão e antena parabólica, porém a audiência é voltada, basicamente, para as telenovelas e para o noticiário policial. O telejornalismo tem pouca audiência. Existem aparelhos de rádio que sintonizam as emissoras de radiodifusão AM de Currais Novos. Não existe radiodifusão comunitária. Não foi percebida a existência de computadores que pudessem permitir acesso as mídias sociais. O acesso a comunicação midiática não tem favorecido ao desenvolvimento da consciência crítica da comunidade, apesar de em 2006, ter recebido o reconhecimento de auto-afirmação quilombola pela Fundação Palmares.
Nas paredes das casas ainda existiam fotografias de candidatos que foram votados pelos comunitários, em resposta a ações assistencialistas praticadas como doação de gêneros de primeira necessidade, como alimentos, dinheiro, calçados, dentaduras, óculos, dentre outros, conforme relatos em conversas informais com a equipe. A comunidade faz elogios a alguns políticos, afirmando dever-lhes favores por benefícios recebidos.

A partir da data de auto-reconhecimento, foi intensificada a substituição dos casebres de taipa por casas de alvenaria, porém a qualidade dos materiais utilizados foi, no mínimo, duvidosa, uma vez que a maioria das residências apresenta rachaduras e infiltrações, com comprometimento da estrutura arquitetônica, sabendo-se que a área não apresenta histórico de sismicidade importante.

Por razões que não se conseguiu esclarecer, a maior parte das famílias do quilombola não está inserida nos critérios para pagamento da taxa mínima de eletrificação rural, chegando-se a pagar uma média de 40 a 80 reais/mês por família. Algumas residências estão sem fornecimento de energia elétrica e outras não têm ligação com a rede elétrica da companhia energética no estado.

A criação de caprinos é uma das poucas atividades de subsistência desenvolvida por algumas famílias da comunidade. É desenvolvida de forma extensiva, ocupando a área do entorno das residências, e envolve todos os membros da família.
A preciosidade da água no semi-árido não pareceria ser um problema para os “negros do riacho”, se não fosse “salobra”. Captada em poço artesiano, pela força eólica de um cata-vento, e impulsionada até uma caixa d’água de 20 mil litros, por uma bomba elétrica nos canos de uma adutora, a água para consumo chega às residências em latas d’águas conduzidas por mulheres em suas cabeças.
A salinidade da água é, parcialmente, tornada palatável, pela ação de um velho dessalinizador, sem manutenção, que fica ao lado da caixa d’água. Como as famílias não possuem filtros, a água consumida não é filtrada. Como utilizam fogão a lenha, dificilmente a água é fervida. A falta de tratamento da água para consumo humano favorece o surgimento de infestações parasitárias e de doenças infecciosas, como hepatite e gastroenterocolites.
A má utilização da água foi flagrada durante a visita multiprofissional, onde se constatou o desperdício d’água do reservatório principal, que fica transbordando constantemente, drenando o precioso líquido, para quem não precisa: a caatinga.

Os recursos hídricos disponíveis não são utilizados para o desenvolvimento de atividades produtivas. Não existe produção local de hortifrutigranjeiros. Um reservatório, tipo “tanque”, com capacidade para mais de 50 mil litros, idealizado para a piscicultura não funciona, permanecendo vazio e, portanto, sem peixes.

A sede comunitária dos Negros do Riacho, que permanece fechada a maior parte do tempo, fica vizinha ao sistema de abastecimento d’água (reservatório e dessalinizador). Teoricamente, facilitaria a gestão das águas para o consumo humano e para atividades produtivas, mas, praticamente, não há nenhum planejamento para a utilização dos recursos hídricos, visto que a água chega até as residências em latas d’águas nas cabeças femininas e não é distribuída para a produção econômica.


No pátio da sede comunitária, existe um piso de cimento, em formato circular, que já foi utilizado como “roda de capoeira”. Como não tem cobertura, e os comunitários não têm calçados apropriados, o escaldante sol do sertão impede a utilização deste precário espaço social. A inadequação dos espaços coletivos da comunidade é mais um motivo para justificar o deslocamento dos negros do riacho
à zona urbana de Currais Novos, onde permanecem, em sua maioria, nas proximidades do mercado público, quase sempre, pedindo esmolas.

O fluxo constante dos comunitários à zona urbana expõe ao alcoolismo, a persistência do status de inferioridade e a violência urbana. O jovem Damião, hoje com 16 anos, há cerca de 10 meses, após ingesta excessiva de bebidas alcoólicas na cidade, ao regressar à comunidade foi atropelado na BR-226, e ainda hoje convalesce de uma fratura exposta na perna esquerda, sendo acompanhado pela equipe da Policlínica de Currais Novos.

O patriarca Laurentino não estava na comunidade na ocasião da visita. A historiadora Maria do Socorro Fernandes Cruz, componente da equipe multiprofissional do ambulatório de saúde mental da Secretaria de Saúde de Currais Novos, juntamente com a técnica em enfermagem Amanda Cecília de Souza Araújo, percebendo as difíceis condições para ter o direito de envelhecer na comunidade, chegaram a aventar a possibilidade do ancião estar no abrigo de idosos da cidade, mas essa hipótese foi descartada por familiares.

Depois da visita à comunidade, ficou claro: “Negros do Riacho” sempre foi uma peça publicitária dos governos. A realidade da comunidade é muito diferente. Há imensa demanda social nesta coletividade que vive abaixo da linha da pobreza. Para compreender a realidade é necessário parodiar o poeta: “A panela está cheia de ratos... As idéias sobre os negros do riacho não correspondem aos fatos”.

Currais Novos/RN, setembro de 2011.

Epitácio de Andrade Filho, Médico Psiquiatra Sanitarista
Candice Guedes, Assistente Social
Maria do Socorro Fernandes Cruz, Historiadora
Amanda Cecília de Souza Araújo, Técnica em Enfermagem

Um comentário:

  1. Olá estou fazendo minha monografia sobre as condições de vida da comunidade... seria possivél ter acesso a algum documento dessa pesquisa?

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