quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Itan: histórias do sistema oracular jeje-nagô

Quando os negros foram trazidos da África para o Brasil pelo sistema de escravidão, consigo trouxeram também um conhecimento amplo que sustentava suas relações entre si, e possibilitava uma compreensão do universo e da vida totalmente diferente da cultura da Europa. O sistema de exploração de braço escravo fez com que os negros oriundos da África Ocidental, principalmente do Golfo de Benin, terminassem por aportar na América. Por mais discriminados e isolados de seus conterrâneos, fundamentos de sua cultura sobreviveram também no Brasil. Isso se deve em grande parte ao fato de eles não separarem a vida cotidiana das práticas de re-ligação com o divino. Entre os inúmeros fenômenos das culturas importadas da África, o sistema oracular, através do qual se consultava as divindades, era de importância fundamental, uma vez que a convivência diuturna entre criadores e criaturas era fenômeno evidente entre os africanos.

 Um dos sistemas da consulta ao oráculo era o jogo de Ifá, constituído de 16 sinais (odu) básicos, com várias histórias (itan) que configuravam cada um deles. As histórias, porém, encerravam princípios de ética e moral, através dos quais se estruturavam e se sustentavam as relações entre os humanos e os divinos e também dos humanos entre si. Assim, pessoas, animais, e até plantas se configuravam verdadeiros personagens, portadores de qualidades e defeitos, nas histórias que serviam de base à leitura e interpretação do odu. Tendo em vista que o conteúdo de cada odu abarca inúmeras histórias, o sistema exigia uma memória excelente, além da capacidade em atinar qual das histórias fazia sentido em relação à pergunta feita pelo consulente. Daí porque os sacerdotes de Ifá, normalmente, em África, tinham uma vida de certo recolhimento e dedicavam sua existência aos estudos de tal conhecimento.

 
No Brasil, por força do sistema escravagista que se negou estupidamente a reconhecer os valores das várias culturas africanas, os sacerdotes do culto a Ifá, os babalaôs, não sobreviveram. Em conseqüência, o jogo-de-búzios se popularizou, substituindo o jogo do opelé de Ifá. Ocorre, porém, que o jogo-de-búzios é oriundo do jogo do opelé e conserva a prática da leitura dos odu. Assim, criou-se uma possibilidade de sobrevivência do sistema oracular e suas histórias elucidativas. Um outro fator a considerar também é que, por força do contexto cultural construído no Brasil colônia, também o sistema de origem européia adotava as histórias infanto-juvenis para transmitirem fundamentos de ética e de moral tão necessários em qualquer sociedade humana. Por isso mesmo, muitas histórias do sistema oracular passaram a fazer parte do repertório contado nas varandas da casa-grande, na roda do terreiro das fazendas ao luar, nas senzalas. Evidentemente, um sem número delas se perdeu com o passar do tempo, enquanto outras se firmaram e constituem atualmente parte integrante do cabedal cultural do Brasil. E as histórias², principalmente aquelas em que os personagens são apenas os humanos, os contos, as narrativas tão bem se integraram ao patrimônio brasileiro que, para a maioria, já não se guarda mais a memória de sua origem. Abaixo um exemplo de um ITAN.

A JACA MOLE

 Oxalá amanheceu com vontade de viajar. Olhe que isso é uma raridade acontecer. É tão raro, que os outros orixá atenderam, de imediato, ao chamado dele para participarem. Saíram de madrugadinha. Oxalá é assim: só começa as coisas antes do raiar do dia. E lá se foram, em fila indiana. Todo mundo andando sem pressa, pois Oxalá é lento, vagaroso e só anda em último lugar.

 Iansã, acostumada com a agonia de sua tempestade, foi ficando impaciente. Olhava para um canto, olhava para outro, mirava o horizonte sem fim bem lá longe. E foi ficando cada vez mais agoniada. Começou a pensar consigo mesma:

−Ah, se eu estivesse sozinha... Logo, logo eu estava lá.
Se pelo menos Xangô, seu parceiro de agonia, resolvesse lhe acompanhar... Mas que nada: Xangô hoje estava decidido fazer companhia ao mais-velho...

 A agonia aumentou tanto, que ela não suportou mais andar no passo do cágado. Aí, ela rodopiou e seguiu em frente sozinha. Lá, bem adiante, parou. Ficou embaixo de uma jaqueira, enquanto observava o grupo que se arrastava lentamente, por causa de Oxalá. A essas alturas, ela já estava pensando no que ia fazer depois que voltasse da viagem. Assim, ela navegou nos pensamentos, fazendo mil projetos. E a ventania corria pelo mato, derrubando folhas verdes e maduras.
 Quando ela estava assim, bem de seu, uma jaca-mole, bem madura, despencou bem em cima de sua cabeça. Ela ficou banhada de visgo e melaço de jaca, da cabeça aos pés. Tomou um susto enorme, deu um grito e ficou sem saber o que fazer. Aí, ela se sentiu profundamente desamparada e resolveu voltar ao encontro do grupo.
Todo mundo notou a melação, mas ninguém disse nada. E ai de quem perguntasse qualquer coisa... De cabeça baixa, ela passou por Oxalá e tomou o último lugar na fila, atrás dele. Iansã apenas ouviu a última frase de uma conversa, que já estava terminando, entre Oxalá e Omolu, os mais velhos entre os mais-velhos:
− Pois é... Como o senhor bem sabe, esse povo assim, agoniado, precisa aprender: Quem só anda às carreiras vai ter que voltar muitas vezes, para vencer a agonia.

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