sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A pobreza social a partir da bioética

Alexandre Andrade Martins

 A pobreza existente no mundo assombra os olhos de quem é sensível ao sofrimento do semelhante. A situação de miséria, de opressão e de exclusão existente no planeta Terra é de causar arrepios, incomoda alguns, mas infelizmente não passa de um arrepio em outros, que motivados pela ganância consumista do capitalismo e impregnados pelo individualismo são indiferentes ao sofrimento alheio. Tragicamente a pobreza marca a realidade de algumas nações, sobretudo na África, na América Latina e na Ásia. Uma marca cravada no coração do planeta, que exige uma atitude capaz de mudar tal situação. A ONU traçou metas para o Desenvolvimento do Mundo na sua assembléia geral de 2002. Seu objetivo principal é reduzir a pobreza no mundo em 50% até 2015. Um grande desafio, um dos maiores da humanidade, para não dizer o maior. Sendo assim, a bioética não pode ficar alheia à dor dos pobres. A bioética, como um saber interdisciplinar que defende a vida e a sua dignidade, precisa contemplar o rosto sofrido da pobreza, pois aí está a grande ameaça à vida no mundo subdesenvolvido.

 Por muito tempo a bioética ficou restrita a uma reflexão ligada ao mundo médico-científico dos países desenvolvidos. Daí nasceu e se consolidou o principialismo, doutrina regida por princípios fundamentais para conduzir as pesquisas envolvendo seres vivos e a aplicação de novos saberes. São eles: principio de beneficência, princípio de não-maleficência, princípio de autonomia e princípio de justiça, que sempre ficou na tangente dos outros três nos países ricos, sendo acionado apenas quando ocorriam expressivas injustiças promovidas na alocação de recursos públicos. O princípio mais reconhecido seria o de autonomia, pois, dentro de uma lógica liberal vivida por esses países, todos têm prioridades sobre si mesmos em vista do bem comum. Esse modelo bioético pouco volta-se para o pobres porque parte de sujeitos sociais em grau de igualdade. O princípio de justiça chega mais próximo da pobreza, mas ficou na tangente.

 A bioética extrapolou as fronteiras do mundo desenvolvido e chegou às nações em desenvolvimento e às pobres. Assim ela chegou na América Latina e na África, mas trouxe consigo o padrão principialista, insuficiente para essas realidades marcadas pela desigualdade, pela injustiça e com grande pobreza. Durante anos, a bioética feita no terceiro mundo não olhou para os pobres com um olhar de sensibilidade e não viu aí um campo de reflexão e atuação, porém isso começa a mudar e atualmente damos destaque para a reflexão bioética feita na América Latina, que começa a dar seus primeiros passos sozinha. Passos em direção aos problemas sociais e aos pobres. O foco principal da reflexão muda, deixa de ser o que acontece "lá em cima" com as pesquisas científicas referentes à aplicação de novas técnicas acessíveis apenas aos ricos (camada muito pequena na América Latina, cuja principal marca é a desigualdade) e volta-se "cá para baixo", onde estão os sujeitos mais vulneráveis, excluídos dos avanços técnico-científicos, porque não podem pagar pela tecnologia e ainda morrem em filas de hospitais (sem atendimento), de fome e de doenças infecciosas facilmente controladas.

 Apenas depois dessa mudança de foco ocorrida na América Latina, podemos falar de pobreza social a partir da bioética, pois antes ela estava em segundo ou terceiro plano para esse saber caracterizado pelo principialismo dentro da elite científica e social. As barreiras de uma bioética elitista estão sendo rompidas, mas ainda de forma tímida. Os pobres ganham centralidade na reflexão bioética, mas, por outro lado, essa reflexão ainda não chegou até eles, não se popularizou, continua nas mãos de uma elite acadêmica e tem pouquíssima força de intervenção social capaz de transformar a realidade desigual e pobre. Os interesses das elites, tanto das políticas como dos ricos e das empresas que financiam pesquisas, não estão voltados para combater à pobreza e promover o bem comum. Ainda permanecem centrados no interesse econômico com base única e exclusivamente no lucro e no poder.

 Os pobres para a bioética são sujeitos concretamente vulneráveis com a vida ameaçada de todos os lados e excluídos dos benefícios proporcionados pelas descobertas técnico-científicas, sobretudo no campo das ciências da saúde, pois não podem pagar pelo saber e não existem políticas públicas eqüitativas capazes de oferecer um bom atendimento de saúde e satisfazer as necessidades básicas para uma vida digna. Os pobres clamam por justiça e libertação. Clamores que fazem a bioética dar mais importância para o princípio de justiça, sem ser principialista, mas que seja capaz de uma intervenção na sociedade orientada para os mais vulneráveis. Assim começa a falar de uma bioética de intervenção, em defesa dos interesses e direitos históricos das populações economicamente e socialmente excluídas do processo desenvolvimentista mundial (GARRAFA; PORTO, 2003 p.35). Os pobres foram excluídos do desenvolvimento histórico do mundo, o qual evoluiu, mas gerou mais pobreza, miséria e exclusão. Uma evolução para poucos, pois seus benefícios são para alguns enquanto a maioria vive aquém do desenvolvimento, vítimas do poder econômico e da injustiça social.

 Em vista da realidade dos pobres, conceitos como equidade, igualdade, justiça social e libertação tornam-se centrais. Reconhece-se e existência clara de uma vulnerabilidade na dimensão social e ela está relacionada à pobreza e à exclusão. No processo desse reconhecimento por parte da bioética latino-americana, temos a contribuição crucial da Teologia da Libertação, uma corrente do pensamento teológico, que para além das fronteiras da religião católica, foi gestada no ventre sofrido dos pobres do continente.Ela fez opção preferencial pelos pobres, mostrou a grande situação de iniqüidade existente no subcontinente americano e que algo precisa ser feito em vista da transformação da sociedade, da libertação dos pobres, oprimidos e excluídos. Uma transformação vinda de baixo, dos meios populares, à luz dos direitos à vida digna, na luta pela libertação e na força da fé. A Teologia da Libertação defende a dignidade dos pobres e vulneráveis e não a faz guiada por proposições abstratas, mas sim apontando os responsáveis pelas mazelas sociais e identificando caminhos para a libertação (SIQUEIRA; PORTO; FORTES, 2007, 175). A bioética nutre-se do diálogo. Assim ocorre no diálogo com a Teologia da Libertação, que temos como fruto o voltar-se para os pobres e fazer opção por eles, por uma vida digna.

 A pobreza é um rosto sofrido a ser contemplado pela bioética no mundo inteiro, sobretudo nos países subdesenvolvidos. Algo que leva a uma intervenção na sociedade para a libertação e a vida digna de todos e não apenas dos ricos. Para a bioética, os pobres são a população vulnerável, a qual precisa ser protegida e para a qual precisa devolver os direitos negados pela evolução da história para então chegarmos a uma maior igualdade e, no mínino, reduzir a pobreza mundial pela metade, como deseja a ONU. Porém igualdade não é ponto de partida, mas, sim, ponto de chegada para a justiça social e a garantia do direito a uma vida digna. A eqüidade vem antes para se chegar à igualdade, pois ela reconhece as necessidades básicas diversas nos sujeitos diferentes e desiguais para atingir objetivos iguais.
 Os pobres, a partir da bioética, são os sujeitos mais vulneráveis concretamente existentes no mundo. Eles são lançados nessa situação marginal, fincando entregues à própria sorte e sofrendo as dores de uma injustiça histórica. Sofrem todo tido de exclusão e opressão; são vítimas da desigualdade e ficam às margens do avanço técnico-científico mundial; estão enfermos e sem atendimento de saúde; vivem em situação precária de moradia, de higiene e de saneamento básico; sofrem com o desemprego e a carência educacional; são descriminalizados pela cor, pela etnia e pelo gênero e nada conseguem fazer, pois, mantidos na ignorância, são manipulados pela ideologia dominante que está nas mãos dos interesses das elites. A bioética precisa intervir nessa realidade, chegar às camadas populares e formar consciência capaz de levar à luta pela dignidade de todos, com sensibilidade, vigor, coragem, esperança e fé.


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