sábado, 14 de janeiro de 2012

Resenha do livro "De olha na rua - A cidade de João do Rio",

Por Isabel Travancas (*)      

 De olho na rua - A cidade de João do Rio; autora: Julia O´Donnell; Editora: Zahar;  

O jornalista é um profissional peculiar. Muitas vezes é visto como herói, lutando pela informação a qualquer preço, se empenhando em descobrir a verdade dos fatos, colocando em alguns casos sua própria vida em risco. Outras vezes é visto como vilão. E como tal não mede esforços para conseguir seus objetivos e dar um “furo” de reportagem. Sem caráter e trafegando pelo submundo do crime, ele não hesita em colocar sua carreira na frente de tudo e todos. Seja representado ou pensado como herói ou vilão, o jornalista é antes de tudo um habitante da cidade. O mundo urbano tem suas características e particularidades que se combinam e se misturam no jornalismo. Quando Simmel (1979) cita como características dos indivíduos da cidade a superficialidade, o anonimato, as relações transitórias, a sofisticação e a racionalidade, é inevitável associá-las ao jornalista. E por isso é possível estabelecer uma relação tão íntima entre este profissional e a cidade. A cidade, mais intensamente a metrópole como afirma Simmel (1978), determina um novo modo de vida, novas relações sociais e a ampliação das ocupações resultantes do desenvolvimento técnico associado ao transporte e à comunicação. E o Rio de Janeiro de João do Rio estava entrando em nova fase com a República, com seu cosmopolitismo em processo em um momento em que o fenômeno urbano trazia em seu bojo transformações no modo de vida e nas relações sociais do século que então se iniciava.

E se o jornalista é um profissional peculiar, João do Rio é um jornalista mais peculiar ainda. Ele é o tema da dissertação de mestrado em Antropologia Social defendida no PPGAS do Museu Nacional por Julia O ´Donnell, sob orientação do professor Gilberto Velho, agora publicada pela editora Zahar. De olho na rua – a cidade de João do Rio aborda a atividade jornalística desse personagem carioca através de uma perspectiva rica e original. Julia constrói uma pesquisa que junta reportagem e etnografia, demonstrando o quanto João do Rio tinha uma sensibilidade etnográfica para cruzar os mais diversos mundos da cidade do Rio de Janeiro do início do século XX.

João do Rio nasceu Paulo Barreto em 1881 e foi um jornalista de destaque em sua época. A literatura foi uma espécie de conseqüência do jornalismo, do qual nunca se afastou. E produziu uma obra vasta de mais de 2500 textos que mescla jornalismo e literatura. Tinha uma escrita de vanguarda para a época e não é por acaso que seus textos continuam fazendo sucesso e não envelheceram. Permanecem saborosos retratos da “cidade maravilhosa”. João do Rio era também um personagem do Rio da Belle Époque. Era um dândi, que chamava a atenção e causava polêmica pelas roupas – fraques verdes – e pelas atitudes. Nunca fez questão de esconder sua homossexualidade e sua figura de mulato gordo não passava despercebida pelas ruas do centro da cidade. Mas foi também um homem querido e popular como destaca a antropóloga ao apresentar a cobertura de seu enterro realizada pelo jornal O País de 27 de junho de 1921. É incrível pensar que a cidade tinha cerca de um milhão de habitantes e, destes, 100 mil participaram do cortejo fúnebre. Havia uma massa popular que se comprimia interrompendo o trânsito. A cidade que tanto amava e sobre a qual muito escreveu prestou uma homenagem pouco comum para jornalistas. E certamente, se não fosse ele o morto, João do Rio estaria participando daquela circunstância como repórter. Estaria curioso para entender o que levou tanta gente a acompanhar o caixão de um jornalista. O que ele teria de especial? E que indivíduos eram esses, que cidade era essa que se transformava tão rapidamente?

O fascínio pela cidade. Pelos diferentes mundos. A curiosidade pelos diversos tipos urbanos. João do Rio vai desenvolver, através do seu “trabalho de campo”, uma verdadeira etnografia da cidade do Rio de Janeiro, que começava a viver sob a República, e sobre seu mais novo personagem: o homo urbanus. Este novo elemento da vida social é definido pela autora como uma “espécie marcada pela assimilação dos novos padrões materiais e comportamentais” (p.17) E o jornalista encarnará esse novo tipo social assim como procurará descrevê-lo em suas mais variadas formas e aspectos. Para isso realizará sua etnografia, ao mesmo tempo em que continuará fazendo reportagem. Reportagem? Etnografia? Segundo o Manual da Folha de S. Paulo (2001:71), “a reportagem traz informações mais detalhadas sobre notícias, interpretando os fatos; é assinada quando tem informação exclusiva ou se destaca pelo estilo ou pela análise.” O antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1978) define etnografia como uma “descrição densa”, que ele compreende como um processo de interpretação que pretende, e espera-se consiga, dar conta das estruturas significantes que estão por trás e dentro do menor gesto humano. Para Julia O´Donnel o que João do Rio faz pode ser entendido como uma etnografia da cidade do Rio de Janeiro, ainda que ele não tivesse nem a intenção nem a preocupação de fazer pesquisa antropológica.

A pesquisadora privilegiou em seu trabalho as crônicas do jornalista, gênero em que mais produziu. E essa escolha parece plenamente justificada uma vez que a crônica é um gênero limítrofe que se situa na fronteira entre a literatura e o jornalismo e tem um pouco dos dois. Nasceu nos jornais e está diretamente vinculada aos fatos cotidianos e à atualidade. E João do Rio produz esse texto “mesclado” que bebe nas duas fontes. Mas ele não produziu apenas crônicas, escreveu também peças de teatro, contos, críticas literárias e traduções. E é na escrita que podemos perceber a sua “sensibilidade etnográfica”. Embora que o texto jornalístico daquele começo de século ainda estivesse impregnado de literatura, não se tivesse até então estabelecido os padrões jornalísticos de objetividade, clareza e concisão, nem houvesse a chamada “ditadura” do lide[1], já havia uma preocupação de informar o leitor e o jornalista não escrevia para si mas para um público amplo.

O texto etnográfico tem características distintas. O antropólogo escreve em primeiro lugar para seus pares, para a academia, e em último para o público em geral. A antropóloga Mariza Peirano (1992, p. 134) ao comentar o trabalho de Vincent Crapanzano sobre brancos na África do Sul, enfatiza esta relação entre os dois processos. “Chama-se a atenção para o fato de que a maneira como se faz etnografia/pesquisa de campo está intimamente ligada à forma como se escreve, ou melhor, se constrói etnografias como textos.” Crapanzano vê o texto de sua pesquisa Waiting como um romance, principalmente por entendê-lo como plurivocal na sua essência. Este aspecto de dar voz aos entrevistados aproxima os discursos jornalísticos e antropológicos, na medida em que os dois estão preocupados em relatar e descrever fatos, situações, comportamentos, modos de vida e visões de mundo. É esta aproximação dos dois discursos que João do Rio fará com maestria. O jornalista tinha uma enorme curiosidade pelos personagens da cidade, suas vidas e mundos. Ele sai em busca de conhecê-los realizando reportagens etnográficas.

Julia O ´Donnel dividiu seu livro em três capítulos distintos. Em sua introdução a autora apresenta seu “objeto” e suas conexões com a antropologia urbana; no segundo capítulo,“O etnógrafo e seu campo”, ela traz o contexto histórico em que viveu João do Rio, com o nascimento da República e as mudanças políticas e sociais sofridas pela cidade, que implicavam em novos padrões de sociabilidade para seus habitantes. Em vários trechos que Julia destaca no livro, o repórter tematiza as questões que a subjetividade individual enfrenta com o ritmo acelerado da metrópole, como descreve Simmel. Não é à toa que ela afirma “Ser moderno era a imposição que o Rio de Janeiro fazia ao país”. (p. 43) Era a época do “Rio civiliza-se”, da enorme influência européia na vida urbana, desde sua arquitetura até a moda, passando pelas letras e artes. E a cidade descrita pelo jornalista não era apenas a da elite europeizada, mas a cidade da pobreza narrada em terceira pessoa presente principalmente nas reportagens escritas na sua primeira década de atividade jornalística, quando estava vinculado à Gazeta de Notícias.

Em “A etnografia urbana de João do Rio”, segundo capítulo da pesquisa, a autora aponta as relações e proximidades da reportagem com a etnografia. A seu ver, a estrutura usada por João do Rio em seus textos tem muitas semelhanças com o relato etnográfico. Suas crônicas apresentam a realidade social dentro de uma perspectiva subjetiva. Julia afirma que a “etnografia, seja nos estudos antropológicos stricto sensu ou na antropologia inominada de João do Rio, é concebida não como a interpretação discursiva de uma ‘outra” realidade, mas como ‘negociação construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes’.” (p. 97) Vale lembrar que João do Rio não fez faculdade e sua única ocupação era ser repórter. E pode ser visto como um dos primeiros profissionais da notícia no Brasil. Isso numa época em que o jornalismo era um “bico” hobby ou uma atividade extra para advogados ou funcionários públicos.

Os personagens urbanos são o tema principal do último capítulo do livro: “As histórias que as calçadas contam: a práxis urbana e o fazer da cidade”. João do Rio tinha um apurado senso de observação e suas descrições dos tipos urbanos eram primorosas. Desde o gentleman, passando pelo snob, seu interesse era narrar e analisar a cena social com seus personagens. E neste contexto a moda tinha importância e destaque. É o próprio jornalista quem diz: “Tudo no mundo é cada vez mais figurino. O figurino é a obsessão contemporânea. Se os antigos falavam de quatro idades, sendo que na última, na de ferro, fugiu da terra para o azul a verdade, nesta agora o figurino impera. Estamos na era da exasperante ilusão, do artificialismo, do papel pintado, das casas pintadas, das almas pintadas... Deseja-se superar, ser o figurino, mostrar qualquer coisa diferente dos mais ou igual aos melhores nem que seja por alguns segundos.“ (p.140-141)

Outro dado rico das crônicas de João do Rio era sua atenção para os aspectos sensoriais presentes no indivíduo do começo do século XX. Para a pesquisadora, ele chegou a construir uma arqueologia dos sentidos. Seus textos vão chamar a atenção para a questão do olhar, presente na figura do flanêur; para a audição, registrando os sons das ruas e a abundância de ruídos; para os odores bastante variados da metrópole em formação, como o do automóvel e o do perfume; para o paladar quando narra o que se comia e bebia naquele momento com ênfase especial para o chá, seu ritual e seus sabores importados e, por fim, para o tato, estando este último muito associado à moda e aos tecidos, assim como aos rituais de interação social como o aperto de mão como regra de civilidade.

João do Rio produziu o que há de melhor em crônica social do início século, juntando com arte e graça, jornalismo e literatura. Julia O ´Donnel produziu uma pesquisa da melhor qualidade, extremamente original, realizando uma aproximação entre dois campos distintos e próximos que aguardava um trabalho como esse para ganhar força e visibilidade.

------------------------------------------------------

[1] Primeiro parágrafo da notícia que deve responder às perguntas quem, como, quando, onde e por que.

------------------------------------------------------------------------------

Referências

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. RJ: Zahar, 1978.

Manual da redação. Folha de S. Paulo. SP: PubliFolha, 2001.

PEIRANO, M. Uma antropologia no plural. Brsília: UNB, 1992.

SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. VELHO, O.(org.). O fenômeno urbano. RJ: Zahar, 1979.

--------------------------------------------------------------------------------

(*) Isabel Travancas  é jornalista, antropóloga e professora-adjunta da Escola de Comunicação da UFRJ


Nenhum comentário:

Postar um comentário