sábado, 28 de janeiro de 2012

2. Da documentação e preservação de práticas culturais ameaçadas às formas narrativas visuais e digitais

2ª Parte.

A primeira função das imagens em antropologia foi (e é) documentar, isto é, criar algo portador de informação que traz em si a inscrição e o registo de um acontecimento observável ou verificável. As imagens poderiam funcionar nesse contexto dentro do espírito de recolha que informava a expansão industrial e colonial, do conhecimento antropológico e de sua dimensão museística.

As tendências visualizantes do discurso antropológico ocidental abriram o caminho para a representação cinematográfica de outros territórios e culturas. O estatuto "ontologicamente" cinético da imagem em movimento favoreceu o cinema não só em relação à palavra escrita mas também à fotografia. Montra da antropologia ao armá-la com a evidência visual não só da existência dos outros mas também da alteridade. O cinema, neste sentido, prolonga o projeto museístico de reunir na metrópole objetos zoológicos botânicos, etnográficos e arqueológicos tridimensionais. A diferença das mais reputadas e "inacessíveis" ciências e artes das elites, o cinema popularizador podia apresentar aos espectadores mundos não europeus, deixando-lhes ver e sentir civilizações estranhas. Podia transformar o obscuro mapa-múndi num outro mundo conhecido e familiar... Como produto da ciência e da cultura de massas, o cinema combinava as viagens com o conhecimento, as viagens com o espetáculo, e transmitia a idéia do "mundo como exposição" (Shohat & Stam, 2002, p. 122 e 125).

Margaret Mead precisava em 1979 os objetivos da antropologia de urgência e a função das imagens nesse processo: "A antropologia, ao agrupar diversas disciplinas [...] aceitou implícita e explicitamente a responsabilidade de reunir e de preservar documentos sobre costumes que desaparecem e sobre povos, quer estejam no estado natural, sem escrita, isolados em qualquer selva tropical, num canto perdido de um cantão suíço, ou nas montanhas de um reino asiático". Assim entendia ser da antropologia visual essa responsabilidade.

Sorenson refere a necessidade de preservar em documentos visuais quer os "modelos culturais de comportamento humano que ainda existem no mundo" e constituem "expressões diversas e por vezes únicas de capacidades humanas fundamentais", que nos informam sobre "uma larga gama das diferentes possibilidades que oferece o desenvolvimento humano, particularmente aquelas que desempenharam um papel na evolução dos nossos modelos de organização ligados às transformações ecológicas e econômicas", quer "as sociedades que se modernizam", permitindo-nos aprofundar os nossos conhecimentos sobre a maneira como o homem se integra no mundo, opõe-se às suas transformações, ou integra as que ele mesmo engendrou. Estes novos modos de vida, tendo evoluído com a tecnologia, talvez mudem mais rapidamente ainda do que as culturas isoladas. O nosso conhecimento muito parcial da dinâmica de uma tal evolução ou do seu significado sociobiológico obriga-nos muitas vezes, pela escolha da sua orientação, a recorrer a decisões arbritárias, tomadas irrefletidamente. A marcha para o futuro será menos traumatizante e mais facilmente aceitável se os nossos conhecimentos forem maiores. (1979, p. 123)

Essa função inicial que caracteriza os filmes de investigação torna-se narrativa nos filmes de exposição. Nesses filmes trata-se de expor, ou reexpor, os resultados científicos já elaborados, isto é, de mediatizar no sentido de passar para outro medium, ou para o público por meio de um outro medium, um discurso científico. "Em muitos casos o filme pode expor certos aspectos da atividade humana com mais facilidade e eficácia do que o fariam um texto ou um discurso oral" (France, 1989, p. ii).

As instituições científicas reconhecem nos filmes de exposição características não só de qualidade instrumental, mas também de natureza simbólica (sistemas de símbolos e modo de estruturação, "gramática das imagens": modos de apresentação dos conteúdos, modos de construção da mensagem, caráter apelativo das imagens e das vozes do comentário), úteis à pesquisa e à comunicação científica e, no caso concreto, à etnografia e à antropologia.

A modalidade expositiva de representação, ao se dirigir diretamente ao espectador por meio de intertítulos ou vozes, expõe uma argumentação acerca de uma realidade, um acontecimento ou tema. Utiliza voz onisciente, exemplo típico1 é o do apresentador de notícias televisivas ou dos enviados especiais. Essa modalidade é mais próxima do ensaio, da informação expositiva clássica (simétrica), de uma conferência ilustrada com imagens, enquadrada no modelo clássico de comunicação-transmissão de informação (Meunier, 1994). Nesse proceso de comunicação, a centralidade é a escrita ou o comentário dirigido ao espectador, servindo as imagens como ilustração, demonstração ou contraponto. Prevalece sobretudo o som assíncrono. Pode, no entanto, recorrer-se ao som síncrono (som ambiente) para criar no espectador um efeito de realidade. A retórica da argumentação desenvolvida pelo comentário (pela voz do comentador) desempenha a função de dominante textual, fazendo que o texto esteja a serviço de uma necessidade de persuasão. A montagem serve sobretudo para estabelecer e manter a continuidade retórica mais que a continuidade espacial ou temporal e para provar a tese enunciada pela comentário. Podem, no entanto, introduzir-se justaposições e ligações inesperadas de imagens de modo a estabelecer pontos de vista originais ou novas metáforas que o realizador talvez queira propor, introduzindo um nível de contraponto, contradição, ironia, sátira, surrealismo (formas de distanciamento?). Por vezes, contém entrevista ou depoimentos curtos. Estes, porém, estão subordinados a uma argumentação. A do próprio filme freqüentemente ocorre por meio de uma voz invisível onisciente ou de uma voz de autoridade proveniente da câmara que fala em nome do texto (interação mínima entre entrevistador e entrevistado). As vozes locais dos outros ficam entrelaçadas numa lógica textual que as inclui e orquestra; conservam escassa responsabilidade na elaboração da argumentação; são sobretudo usadas para apoiar, fundamentar provas ou justificar aquilo a que se faz referência no comentário. A voz da autoridade pertence ao próprio texto em vez daquela de quem foi recrutado (cooptado) para fazer parte dele.

O filme de exposição ou modo expositivo de representação pretende dar ou fazer passar a impressão de objetividade, racionalidade bem estabelecida, tendência para a generalização imposta pelo comentário (voz over), extrapolada com base nos exemplos concretos oferecidos pela imagem. Utilizando uma economia de linguagem que esquematiza a problemática, apresenta questões de modo sucinto e enfático por meio da eliminação da referência ao processo através do qual se produz, organiza e regula o conhecimento de modo que este também está sujeito aos processos históricos e ideológicos de que fala o filme.

Espera-se que o espectador dessa modalidade de exposição crie expectativas de que está perante um mundo portador de uma única racionalidade e de um conjunto de lógicas causa-efeito, antecedentes-conseqüentes, e diante da procura da solução de um problema ou enigma.

Outras formas narrativas de natureza exploratória constituem modalidade diferente de utilização da imagem na pesquisa etnográfica e na apresentação pública de formas acabadas. Essa se centraliza na prioridade dada à observação, à construção da narrativa baseada na imagem, às vozes e sonoridades locais, à utilização de arquivos documentais. É esse processo que melhor caracteriza o trabalho antropológico e que se tornou método tanto no cinema documentário (Flaherty, Vertov) como na antropologia visual (Rouch, MacDougall, John Marshall, Trinh T. Minh-há) (Ribeiro, 2004).

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