sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

1a parte do texto de antropologia visual

Introdução

Pretendemos nesta breve reflexão inventariar algumas das transformações por que foi passando a antropologia visual desde que, em meados do século XIX, surgiram a fotografia, o cinematógrafo, o cinema, e que estes começaram a ser utilizados e questionados pela ciência em geral e, mais especificamente, pelas ciências sociais e pela antropologia. Acentuamos utilizados focando assim a perspectiva mais instrumental das tecnologias do som e da imagem como instrumentação de pesquisa e inquérito e como meio de divulgação, disseminação, comunicação e conhecimento. Não deixaremos, no entanto, de levar em conta o fundo e o contexto, isto é, as imagens e as sociedades e culturas que as utilizam e nas quais ganham relevo e uma concepção mais intemporal da dimensão antropológica das imagens (Belting, 2004).

1. Antropologia visual da "era da reprodutibilidade técnica" e da expansão industrial à era da globalização e da transformação digital

Na investigação deste tópico, torna-se necessário situar o cinema e a antropologia num conjunto mais aberto das transformações sociais, econômicas, políticas e culturais.

Constatamos que o cinema e a antropologia de terreno têm, desde o seu nascimento, uma participação comum num mesmo processo de observação científica. O seu nascimento coincide com a sistematização da atitude analítica como um dos aspectos predominantes na atitude científica do século XIX e com a expansão industrial. O objeto da antropologia e do cinema situava-se sobretudo em sociedades, geográfica, física, material e culturalmente distantes das nossas (Piault, 1992). A sua evolução acompanha os processos sócio-históricos, como poderemos facilmente constatar nas primeiras décadas do século XX com o advento da montagem no cinema e o desenvolvimento da escola soviética, com o cinema direto nos anos de 1960 e com a fragmentação das narrativas e a crise das representações na década de 1980.

O cinema (e a antropologia) tornou-se também parte da violenta estruturação da percepção espacial, social e cultural e da interação humana promovidas pelos modos de produção e pelo intercâmbio industrial capitalista (tecnologias modernas), e pela estruturação do espaço urbano (construção em larga escala de logradouros urbanos povoados por multidões anônimas). Podemos afirmar que a modernidade se concretizou no cinema e pelo cinema: primeiros filmes, instituições cinematográficas, ascensão da linguagem visual como discurso social e cultural.

Se a viagem entre os continentes permitia alcançar a visão efêmera do outro, a fotografia e depois a câmara cinematográfica tornaram possível armazenar essas visões. Estas, construídas pelos operadores das novas máquinas, não eram inocentes. Transportavam consigo as interpretações subjetivas dos operadores, inseparáveis dos discursos dos respectivos impérios e dos objetivos institucionais da sociedade ocidental. As tendências visualizantes do discurso antropológico abririam também o caminho à representação cinematográfica das culturas. Constituindo como que um prolongamento do microscópio e de outra instrumentação científica da modernidade, os novos aparatos visuais mostravam o poder da ciência em decifrar outras culturas, em tornar o outro objeto e espectáculo. Esta a grande ambivalência das origens do cinema: por um lado, instrumento de exibição do outro (arte de feira), por outro, a ligação com a ciência e a cultura.

As sociedades e as culturas permaneceram como que divididas em predominantemente observadas (fotografadas, estudadas, cinematografadas) e predominantemente observadoras (que fotografam, estudam, produzem filmes), orientais e ocidentais, sul e norte, pobres e ricas, rurais e urbanas, femininas e masculinas. Por outro lado, com a transformação do cinema em indústria, as preocupações científicas que marcam o início das primeiras imagens da reprodutibilidade técnica tornam-se suspeitas e merecedoras de reservas, porque excessivamente dependentes do poder econômico, das indústrias das imagens e das tecnologias, e da organização do trabalho (equipes de produção). A ciência e a antropologia permanecem sobretudo textuais, e à imagem pouco mais resta do que servir a propósitos de ilustração ou popularização da ciência. Essa tendência manter-se-á não obstante o desenvolvimento de muitas e boas práticas de utilização da imagem.

Os limites do trabalho na antropologia visual são sobretudo dependentes de três fatores: a dependência econômica, os constrangimentos técnicos que só nos anos 1960 permitiram o registo de som síncrono e de planos de longa duração, a dificuldade de trabalho com os filmes sem o recurso a pesados equipamentos (moviola) e a conseqüente separação da escrita como corrente dominante da produção científica em antropologia. O advento do vídeo nos finais dos anos 1960 não resolveu totalmente as limitações e os constrangimentos. A edição (montagem) continuou dependente de pesados investimentos, e as instituições acadêmicas permaneceram mal equipadas. Só o advento da era digital do DV – "a utopia tornada máquina" (Sabouraud, 1999) – tornou definitivamente autônomo o investigador em sua tarefa de desenvolvimento de seu projeto de passagem ao terreno e às imagens e, conseqüentemente, da realização de seus filmes e documentos visuais digitais. As razões evocadas de natureza epistemológica, decorrentes do estatuto e da natureza da imagem, encobrem, por vezes, complexas relações de poder, o caráter conservador das instituições e a pouca abertura à sociedade e à inovação. Só as tecnologias digitais viriam a abrir brechas nesse edifício e a romper com alguns desses atavismos.

Com a passagem da era da reprodutibilidade técnica (Benjamin, 1936) para a era da transformação digital (Jenkins, 2003), emergem novas problemáticas. Os processos sociais e culturais da globalização aceleram-se (revolução digital) e tornam-se multipolares. Na realidade, trata-se de uma mudança vertiginosa jamais verificada anteriormente na história da humanidade, e os meios digitais são freqüentemente apresentados como o "motor" dessa mudança. Essa interpretação

oculta o processo de concentração econômica à escala global, que começou antes da revolução digital e implica grandes inovações em tecnologias tão díspares como a propulsão a jato e a tecnologia de satélite, os cabos de fibra óptica e o transistor; ignora os realinhamentos geopolíticos das últimas décadas desde as crises do petróleo e do colapso do comunismo, que levaram à transição de blocos de poder ideologicamente opostos para blocos de comércio neoliberais e capitalistas e aos mercados emergentes da Ásia e da América Latina; não considera a desregulamentação (i. e., as alterações jurídicas e institucionais) que tem vindo a afetar as indústrias de televisão nacionais e os monopólios de telecomunicações controlados pelo Estado ou por grandes grupos nos países industrializados. (Elsaeser, 2001, p. 101)

O digital, porém, tornou-se "metáfora cultural" de crise e transição – de passagem da "representação" para a "simultaneidade", "telepresença", "interatividade", "tele-ação".

Em relação ao cinema, o audiovisual não é muito mais que uma nova técnica de pós-produção, de apresentação, de armazenamento, de distribuição. Isso, no entanto, é uma parte da questão, pois o cinema digital em que a animação ou o componente gráfico é prioritário associa-se mais à pintura e à escrita como aplicação manual de talento e competência – regresso do "artista" e do autor como fonte e origem da imagem como meio mais expressivo que reprodutivo. Paralelamente a digitalização coloca em pauta crenças profundamente enraizadas na representação e na visualização e leva a reexaminar muitos dos discursos – críticos, científicos e estéticos – baseados em nossa cultura.

A despeito dessas questões, a produção torna-se cada vez menos dependente dos países do centro, do poder econômico ou das estruturas profissionais e dos interesses corporativos. Tornam-se caducas as categorias como "amadores" e "profissionais". Desenvolve-se uma intensa atividade de produção descentrada, nas margens, com base numa multiplicidade de pólos, que cada vez mais entram em processos de produção e de interação em rede.

Também se diluem as fronteiras entre os media. Os media digitais incorporam potencialmente todos os anteriores. Surgem novas concepções e representações das relações espaço-tempo (Augé, 1997; Castells, 2000) relações entre distintos períodos, entre o presente e a memória, entre regiões diferentes: a multilocalidade, as ligações interdisciplinares, as ligações intertextuais e discursivas (Clifford & Marcus, 1986; Marcus & Fisher, 1986; Marcus, 1991; 1994), a "hiperescrita" (textos híbridos, não lineares) entre diferentes meios e variados discursos (Stam, 2001). As tecnologias digitais tornam-se acessíveis a um número cada vez maior de utilizadores (democratização dos media), enquanto se melhora a sua qualidade técnica e se diluem também as fronteiras entre "amadores" e "profissionais" dos media. As tecnologias digitais tornam-se tecnologias da memória (arquivos digitais) suscetíveis de armazenar, organizar e comunicar uma grande quantidade de informação, de qualquer tipo e suporte (textos, imagens, sons, audioimagético), de fazer circular e tornar facilmente acessível e disponível simultaneamente numa pluralidade de lugares por um grande número de utilizadores – as bases de dados serão as formas simbólicas ou culturais contemporâneas, aparentemente caóticas mas estruturadas, nas quais se podem realizar um grande número de operações básicas: navegar, ver, organizar, reorganizar, selecionar, compor, enviar, imprimir etc. (Halbwachs, 1968; Levy 2001; Baer, 2003). Se, por um lado, está latente a ameaça de banalização ou da corrosão da forma inerente ao pensamento e à racionalidade (Postman, 1998), por outro, torna-se urgente encarar o desafio que as tecnologias digitais oferecem à investigação, ao ensino, à criação de espaços virtuais de produção, circulação e utilização do conhecimento e às profundas transformações que parecem produzir nas sociedades contemporâneas, de modo comparável à invenção do alfabeto (Castells, 2000). Surgem, também, novos desafios e novas áreas de investigação relacionados com a sociedade, a cultura e o conhecimento em rede – "sociedade em rede", "cibercultura", "ciberantropologia", "cibersociedade", "etnologia das comunidades virtuais", "inteligência coletiva", "antropologia digital", que urge trazer para o centro da investigação na antropologia (Hine, 2000), com a convicção de que a sociedade, o pensamento e a cultura de cada época se refletem em sua técnica (Wiener, 1998)

Na convergência desses fatores, as tecnologias digitais e os computadores poderão ser, para o antropólogo e os cientistas sociais, muito mais úteis que meros processadores de textos, de imagens e sons e de codificação de dados recolhidos no terreno: um poderoso meio de (autoria) apresentação de resultados de investigação – como o filme em DVD, a hipermídia, o lugar de convergência com teorias e paradigmas de investigação (pós-estruturalismo, teoria crítica, teoria das redes) capazes de desenvolver uma apresentação mutissensorial (escrita, sons, imagens), de relacionar dados com a interpretação, de justapor vozes e perspectivas, de permitir ao utilizador processos interativos de descoberta e de utilizaçao ativa e criativa no processo de aprendizagem, de gerar produtos culturais ou científicos para grandes públicos (Landow, 1995; Clement, 2000; Bairon, 2002).

As tecnologias digitais, além de potencializarem (facilitarem e generalizarem) as práticas tradicionais da pesquisa em antropologia em sua componente escrita, audiovisual e na organização e no desenvolvimento do processo de virtualização museológica (de arquivos e coleções), parecem também constituir um grande avanço na medida em que incorporam potencialmente todos os media anteriores, diluem as especificidades de cada um, facilitam a intertextualidade e a sua mestiçagem (Stam, 2002) e a integração dos três processos, das práticas ou tradições acima referidos.

As novas tecnologias digitais e sobretudo a hipermídia constituem uma forma, porventura mais eficaz, de integração da antropologia visual com a antropologia (escrita) e da antropologia com a antropologia visual; de imagens, sons e audiovisuais com a escrita; dos filmes com a reflexão teórica – todo o aparelho crítico do filme (produção, utilização, reflexão teórica); das práticas atuais com o regresso "à antropologia clássica, para melhor sondar os seus fundamentos práticos e intelectuais e abordar a questão da construção discursiva de seus objetos no texto etnográfico" (Kilani, 1994, p. 29). Essas novas práticas reconfiguram-se como um voltar a "caminhos muito antigos, ao prosseguir esta resposta à crítica da retórica etnográfica convencional" (Marcus, 1995, p. 52), às imagens iniciais, "verdadeiros arquivos vivos, conduzem a novas abordagens da antropologia e da história [...] a sua posição tem necessidade de ser precisada, as suas coordenadas devem ser elucidadas em relação às próprias condições da sua captação, do seu registo. A interrogação legítima sobre o estatuto destes dados passa definitivamente por um exame crítico da sua realização" (Piault, 1992, p. 61), da tradição escrita e imagética com a tradição museológica – as coleções, os arquivos –, isto é, com a memória e conseqüentemente com o tempo presente e a história.

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