domingo, 29 de janeiro de 2012

Antrpologia visual -parte 3

3. Das coleções dos museus às múltiplas formas e suportes

As primeiras imagens enriqueceram as coleções dos museus, os arquivos, as enciclopédias cinematográficas. Além da função de preservação das culturas atribuída à "antropologia de urgência" e de comunicação da ciência, desenvolvem-se práticas de constituição de acervos com múltiplas funções museológicas e de investigação como a realização de estudos sistemáticos e comparativos. São exemplos disso os museus de etnografia e também as cinematecas e fototecas.

O ato fundador dessa utilização das imagens em antropologia deve-se a L. F. Regnault ao se propor, a partir das imagens, a comparar atitudes, movimentos e técnicas, procurando assim criar as bases de uma ciência experimental cujas premissas seriam a psicologia étnica comparada, baseada nas imagens, e a de identificação cultural do corpo e do movimento. Regnault com Azoulay iniciam a utilização dos rolos Edison para registrar o som, produzindo os primeiros fonogramas antropológicos. Em 1900, propõem no Congresso de Etnografia de Paris um verdadeiro programa de antropologia visual: elaboram um projeto de laboratório "audiovisual" de etnografia; defendem o emprego sistemático da imagem em movimento na pesquisa etnográfica; propõem a criação de arquivos antropológicos filmados. "Os museus de etnografia deveriam anexar às suas coleções cronofotografias."

Na Alemanha, o Institut fur den Winssenschaftlinchen Film (IWF), hoje IWF Wissen und Medie (conhecimento e media), institui um método que garante cientificidade e normatização documental – regras para a documentação filmada em etnologia e em ciências das tradições populares" – que formou os antropólogos alemães para filmarem na Melanésia, África, América e Europa2, recomendando atenção à exatidão científica, evitar referências ideológicas e a presença de estranhos à antropologia. Organizou cursos intensivos de cinema para antropólogos e preparou expedições. As regras instituídas exigiam que a filmagem fosse feita ou supervisionada por antropólogos experimentados, tendo o cuidado da exatidão e do rigor científico, que os fatos filmados fossem autênticos (consideravam, por exemplo, que os processos técnicos eram reconstituíveis, os rituais e as cerimônias não), que não se fizessem movimentos de câmara, nem se utilizassem efeitos ou tomadas de ângulos espetaculares, que a montagem tivesse como único objetivo ser representativa. Em 1952, Gotthard Wolf, diretor do Instituto, propõe o estabelecimento em Göttingen do primeiro arquivo sistemático do filme etnográfico, e Konrad Lorenz trabalha desde o início na compilação e organização da Enciclopédia Cinematográfica.

O interesse pelo recolhimento e coleção de imagens do mundo foi não apenas dos etnólogos. O banqueiro Albert Khan se propôs a realizar o primeiro arquivo cinematográfico na França, Les Archives de La Planète. Graças a ele foi criado o Comitê Nacional de Estudos Sociais e Políticos e foi financiada a primeira cadeira de Geografia Humana no Collège de France, com Jean Brunhes como titular; foi organizada a primeira memória do que mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial, denominou-se etnografia ou antropologia de urgência – perante a necessidade de registrar, antes que fosse tarde, as atividades e os comportamentos humanos em vias de desaparecimento com o advento e a difusão da modernidade. Albert Khan empreendeu, orientado por Jean Brunhes, um programa sistemático de registro cinematográfico do mundo inteiro (ambiente construído e natural, formas de expressão religiosa e cívica), que deveria estar disponível para especialistas e políticos.

Esses atos fundadores viriam a ser exemplo e modelo para algumas instituições museológicas e acadêmicas. Hoje, com o desenvolvimento das tecnologias digitais, o processo pode generalizar-se, cabendo aos antropólogos visuais a missão de orientar a conservação, animação e divulgação de coleções e arquivos de empresas, instituições públicas, famílias. Encontram-se em risco de irremediável perda documentos visuais (fotografias, filmes e vídeos) nos mais diversos contextos, fazendo parte dos processos sociais neles existentes (contextualizados) fotografias e filmes de família3, empresa, escola, associações culturais, coleções de fotógrafos e cineastas amadores e profissionais.

Poderíamos apontar alguns projetos exemplares4 dessa prática realizados por uma grande diversidade de instituições. Não o permitindo a natureza deste texto, indicamos o projeto5 HADDON, dirigido por Marcus Banks do Institute of Social and Cultural Anthropology da Universidade de Oxford. Este se propõe tanto a recuperar os filmes de interesse etnográfico para instituições diversas e para colecionadores particulares na Inglaterra e em diversos países europeus, nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália como a reunir num catálogo único, uma base de dados eletrônica, toda a informação acerca desses filmes. Uma das originalidades do projeto de investigação é o de solicitar a colaboração aberta, de um site na Web, a toda a população que puder contribuir para a sua realização e aos interessados em sua utilização.

4. Da objetividade, como auxiliar de pesquisa aos novos paradigmas epistemológicos

A primeira e a mais simples utilização das imagens na investigação em ciências sociais e, mais especificamente, na etnografia e na antropologia, foi (e é) como auxiliar de pesquisa. Nessa situação as tecnologias da imagem constituem instrumentação de pesquisa ou "instrumento do conhecimento". São reconhecidas ou atribuídas a elas características específicas, úteis à pesquisa científica no quadro de alguns paradigmas de investigação (Ribeiro, 2003, cap. VI e II) (positivismo, naturalismo): a sua relação com o referente – a realidade de que constitui índice (Pierce) –, a transparência tecnológica (muitas vezes manifesta nos discursos do quotidiano); a observação encoberta (câmara oculta), a observação totalmente participante.

Nesse processo de utilização, as imagens permanecem rigorosamente controladas pelos métodos tradicionais de inquérito. A sua utilização não os modifica. É comumente aceito pela comunidade científica (micromeio dos especialistas) que a partir de finais do século XIX inicia sua utilização6. A instrumentação científica introduzida no processo de pesquisa é apenas complementar dos métodos tradicionais: funciona como instrumento de prova e controle, de análise minuciosa e detalhada e como bloco de notas extraordinariamente eficaz. É geralmente admitida a eficácia da utilização dos registros cinematográficos e videográficos no estudo dos comportamentos corporais, rituais, materiais que se desenvolvem num determinado espaço e tempo – "atividades exteriores humanas". Às atividades interiores (representações mentais7) o acesso sobretudo faz-se por meio da palavra-fala ou com o apoio da palavra-fala (vozes locais). Daí a importância dos registros de áudio.

Essa é uma prática antiga que remete às primeiras expedições científicas e à realização pioneira do trabalho de campo. A câmara fotográfica (e por vezes a cinematográfica) acompanhou quase sempre o antropólogo em suas deslocalizações. Malinowski refere em seu Diário em sentido estrito uma grande quantidade de vocabulário relacionado com a sua utilização e com o ato fotográfico: revelar (1985, p. 85), transportar películas, placas e o equipamento necessário (p. 218), reparar o aparelho (p. 243), anotar os elementos a fotografar (p. 218), discutir a fotografia com seu assistente (p. 243). Malinowski explica ainda que fez uma série de fotografias (p. 88), alguns clichês (p. 261), danças cerimoniais (p. 88), canoas (p. 241), trocas de alimentos (p. 264), caramanchões (p. 285), visando indivíduos, objetos ou ações puramente típicos da cultura local, e confessa a sua negligência ao esquecer a película apesar do projeto de fotografias a fazer (p. 177), lamentando não o ter feito em determinados elementos (p. 239).

Historicamente as origens da antropologia visual assentam em pressupostos positivistas8, isto é, que uma realidade objetiva é observável e que o rigor da observação é dependente dos métodos de pesquisa. No entanto, freqüentemente se admite a natureza socialmente construída da realidade cultural e a natureza experimental de nossa compreensão de qualquer cultura, e é nesse contexto que de modo habitual se situa a antropologia visual, identificada por vezes como pós-estruturalista e pós-modernista.

Alguns autores consideram que a antropologia visual (o filme) antecedeu ao texto nas interrogações sobre a representação antropológica e questiona-a de uma maneira mais profunda do que se poderia prever: "bem à frente da representação da escrita, os filmes documentais e etnográficos começaram a tomar consciência das dificuldades implicadas na representação de outros mundos e pessoas através do medium imagens e da forma particular das histórias da cultura euro-americana" (Devereaux, 1995, p. 332).

Noções como a de "terreno", lugar objetivo circunscrito no espaço e tempo, "presente etnográfico" e as formas objetivistas e realistas de representação da realidade são postas em causa em favor de uma antropologia multissituada (no espaço, tempo e posicionalidade), visando harmonizar a mobilidade das forças sociais (deslocalização) com a sua fixidez (local). A voz invisível onisciente dá lugar a uma pluralidade de interpretações (situadas) dos fenômenos sociais (pluralidade de vozes) e às formas dialógicas de abordagem do "terreno" e de construção discursiva, remetendo a formas mais criativas, mais conscientes e mais participativas de escrita sem perda das qualidades da investigação acadêmica do passado (Anderson, 1999). O investigador torna-se presente desvelando ou mostrando a experiência do antropólogo no terreno, o seu lugar de observação, as relações estabelecidas, os saberes aí adquiridos ou construídos a partir daí. Inscreve a sua experiência pessoal num duplo contexto, o da relação com os observados (diálogo de mediação entre si e o outro) e o da relação com os leitores ou espectadores (comunicar a sua compreensão da experiência ao outro, simular para o leitor um mundo possível de significações e de ações, um mundo que lhe "fala").

A modernidade da escrita do texto etnográfico reside, precisamente, neste traço que o antropólogo deixa da sua experiência e na pertinência desta experiência na construção do objeto. O conhecimento antropológico rege-se cada vez mais por um contexto no qual o informador e o antropólogo procuram estabelecer uma base comum de compreensão. O que se cria nesse encontro é uma espécie de lugar intermediário entre duas culturas. É "um momento de pensamento intercultural". (Clifford, 1980, p. 529)

É nesse sentido que é preciso repensar o processo social e intelectual, a partir do qual surgem as descrições e se constrói o texto etnográfico. Atribuindo assim à palavra "dada" o seu sentido etimológico de "coisa dada" (id.), de coisa trocada entre dois sujeitos; e à cultura – tanto a do antropólogo como a do informador –, a sua dimensão dinâmica de construção, de negociação e de contestação dos pontos de vista" (Kilani, 1994, p. 34).

Clifford sugere também que, embora a etnografia não possa escapar ao reducionismo, pode se mover além das molduras historicamente abstratas (1988, p. 23). Seguindo essa via, a hipermídia etnográfica pode ser um meio de expandir determinados aspectos tradicionais da etnografia, tais como a estrutura narrativa, a intersubjetividade, a plurivocalidade, as linearidades e a utilização pedagógica. Contendo potencialidade de conjugar várias formas de análise, de reflexão, de interpretação e de vozes (incluindo a dos sujeitos da pesquisa), a hipermídia tem o potencial de ir além do processo de "descrever" a cultura para tentar o centro da própria "experiência da cultura". Experiência como processo em que o utilizador da hipermídia poderá adotar ao fazer seu estudo e a análise antropológica, projetar a própria pesquisa, interpretar de formas múltiplas a informação etnográfica (Anderson, 1999).

Assim acontece com o trabalho do investigador em antropologia, já em si hipermidiático na medida em que constitui um processo de observação multissensorial; de elaboração das inscrições locais – registros, transcrições –; de ligações entre saberes (locais e globais, microssociais e macrossociais, concretos e abstratos, produtos de múltiplas abordagens científicas, jornalísticas, artísticas etc.), entre dados e teoria; de aprendizagem por tentativas repetidas baseadas na imersão no terreno. A própria situação do trabalho de campo poderá ser entendida como um processo de imersão semelhante ao do utilizador no hipertexto/hipermídia, embora de natureza muito mais complexa (liminaridade, trajetórias não lineares, metamorfose, multiplicidade, descentramento, orquestação), e a apresentação final dos resultados (integração da experiência realizada na instituição antropológica) é uma forma de criar todo o tipo de ligações múltiplas entre dados e interpretação, múltiplos intertextos, decorrentes de múltiplas vivências, qualidades perceptivas, perspectivas de observação e análise, de confronto entre os dados e a teoria, ou mesmo a seleção e utilização dos media que se vão incorporando à investigação e à relação com o terreno, os pares, a comunidade científica, as instituições. Retornando a Vertov, a realização de um filme, ou o desenvolvimento de um projeto de pesquisa e a conseqüente escrita de um texto, ou outra forma de apresentação da pesquisa é um processo de montagem (Piault, 2000; Tomas, 1994; Ribeiro, 2000; Bairon, 2003), e esta é regida por uma regra – a das aproximações sucessivas (Rouch, 2004).

Permitindo armazenar, organizar uma grande quantidade de informação proveniente de uma multiplicidade de meios e torná-la facilmente acessível e utilizável, as tecnologias digitais e a hipermídia tornam possível apresentar todo o percurso de um investigador, articular o processo desenvolvido ao longo de décadas e conduzem a contínuas reescritas do percurso: a historicidade de uma comunidade, de um povo, de uma instituição e a possibilidade de uma infinidade de processos criativos de interligações e de reflexão acerca desses processos de interligação e de "intertextualidades eletrônicas" (Darley, 2003).

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